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Boas práticas

Boas práticas científicas

A FAPESP lançou hoje (27/9) seu Código de boas práticas científicas, conjunto de diretrizes éticas para a atividade profissional dos pesquisadores que recebem bolsas e auxílios da Fundação. O documento, primeiro do gênero de uma grande agência de fomento brasileira, organiza normas que, em diversos casos, já fazem parte da rotina da Fundação e das instituições de pesquisa, como a necessidade de pesquisadores e avaliadores declararem situações de conflito de interesses ou a importância de conservar os registros da pesquisa após a publicação dos resultados. Em outros aspectos, o código busca definir normas para práticas sobre as quais pode haver interpretações divergentes. No que diz respeito à indicação dos autores de um trabalho científico, por exemplo, estabelece que devem ser incluídos apenas aqueles que, tendo concordado com a indicação, tenham efetivamente dado contribuições intelectuais diretas e substanciais para a concepção e realização da pesquisa. E esclarece que a cessão de recursos financeiros e de infraestrutura “não é condição suficiente para uma indicação de autoria de trabalho resultante dessa pesquisa”.

O código parte do princípio de que todo cientista é eticamente responsável pelo avanço da ciência e que deve conduzir-se “com honestidade intelectual, objetividade e imparcialidade, veracidade, justiça e responsabilidade”. “Há uma tendência crescente de trabalhar a ideia das boas práticas de conduta, no âmbito social, econômico e cultural”, disse o presidente da FAPESP, Celso Lafer. A Fundação desde a sua criação tem como critério apoiar pesquisas e conceder bolsas em todas as áreas do conhecimento, desde que as propostas tenham qualidade e provenham de pesquisadores idôneos, explicou o presidente. “Como a atividade de pesquisa se ampliou muito, era necessário colocar de forma mais explícita os padrões de conduta esperados de um pesquisador”, afirmou Lafer. O código também é aplicável ao exercício da função de avaliador científico pelos assessores da FAPESP e às instituições-sede das pesquisas e aos periódicos científicos que contem com seu apoio para-publicação.

A elaboração do código levou em conta a experiência internacional acumulada em relação à questão da integridade ética da pesquisa. Serviram como referência códigos de conduta e manuais de procedimentos adotados por agências internacionais como a National Science Foundation; os National Institutes of Health, dos Estados Unidos; o Research Councils UK, do Reino Unido; a European Science Foundation; e as agências australianas de fomento. O código começou a ser discutido internamente na Fundação há cerca de um ano. Para dar respaldo ao debate, um documento de trabalho tratando da experiência de outros países foi produzido por Luiz Henrique Lopes dos Santos, professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador adjunto de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP, além de coordenador científico da revista Pesquisa FAPESP. Intitulado “Sobre a integridade ética da pesquisa”, o texto apresenta um panorama internacional sobre a questão e indica a existência de três tipos de abordagem. Num deles, em que se incluem países como o Brasil e a França, não há políticas sistemáticas de promoção e prevenção nem mecanismos permanentes a lidar com a questão. No segundo figuram países como Estados Unidos, Noruega e Dinamarca, que dispõem de uma estrutura coordenada por órgãos dotados de poder e dever legalmente atribuídos. No terceiro estão nações como Alemanha, Reino Unido, Canadá e Austrália, onde não há órgãos instituídos para regular e supervisionar as atividades relativas à integridade da pesquisa, mas onde as agências nacionais de fomento assumiram funções regulatórias.

O código foi discutido dentro da FAPESP por coordenadores de área, o Conselho Técnico-Administrativo e o Conselho Superior da Fundação. Há dois meses, o texto final foi aprovado pelo Conselho Superior. Posteriormente apresentado e discutido com os pró-reitores de Pesquisa das três universidades estaduais paulistas e com representantes da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e da Academia Brasileira de Ciências, que receberam bem a iniciativa. “A FAPESP busca contribuir para que a gente possa ter na comunidade de pesquisa do estado de São Paulo uma cultura cada vez mais sólida de integridade ética na pesquisa”, disse o diretor científico da Fundação, o físico Carlos Henrique de Brito Cruz. “Trata-se de uma preocupação mundial, por isso fizemos um estudo de como outros países com mais tradição no assunto do que o nosso lidam com a questão.” O código estabelece que as instituições de pesquisa com projetos financiados pela Fundação devem incluir em seu organograma instâncias encarregadas de promover a cultura de integridade ética, por meio de programas regulares de educação, disseminação e treinamento, e de investigar e, se for o caso, punir a ocorrência de possíveis más condutas científicas e reparar os prejuízos científicos que tenham causado. “Nosso objetivo é desenvolver uma cultura que valorize as boas práticas, baseada em três pilares: a educação, a prevenção e a investigação, com sanções justas e rigorosas”, disse Brito Cruz. No campo da educação, as instituições deverão promover cursos, workshops e outras atividades que mantenham continuamente a discussão sobre as boas práticas na agenda de estudantes e pesquisadores. “Poucos países têm programas de bolsas de iniciação científica como temos aqui no Brasil – só a FAPESP financia 3 mil bolsas todo mês. É importante difundir as boas práticas entre os jovens estudantes”, disse Brito Cruz. “A questão da educação é fundamental, pois a educação ética é inseparável da educação científica”, disse Luiz Henrique Lopes dos Santos. “Nem sempre é trivial, e frequentemente requer perícia científica, distinguir que dados são relevantes e que dados não são relevantes para a confirmação ou não de uma hipótese científica, quando se trata de estabelecer se um certo artigo relata com fidelidade todos os dados relevantes para a ponderação do grau de corroboração que propõe para suas hipóteses”, afirmou.

No campo da prevenção, o objetivo é garantir que pesquisadores e orientadores, se tiverem dúvidas ao enfrentar situações concretas, encontrem respaldo da instituição para resolvê-las – e que eventuais denúncias possam ser recebidas sem que o autor fique vulnerável a retaliações. Alegações de má conduta científica deverão ser investigadas pelas instituições, que farão uma avaliação preliminar, num prazo não maior do que 30 dias. As más condutas graves mais típicas e frequentes, na definição do documento, são a fabricação de dados; a falsificação de informações, apresentando-as de forma imprecisa ou incompleta a ponto de interferir nas conclusões; e o plágio, definido como a utilização de ideias ou formulações de outra pessoa sem dar o devido crédito. Caso as evidências sejam consistentes, deverá ser aberto um processo de investigação formal. Os acusados serão notificados, assim como será necessário avisar a FAPESP sobre a existência e a natureza da alegação. A investigação deve durar um prazo não superior a 90 dias, durante os quais serão levantados evidências, depoimentos e pareceres técnicos. No final do processo, um relatório deverá expor as conclusões e justificá-las. Os acusados poderão em um prazo de até 30 dias comentar os resultados. Depois disso, o processo formal será encerrado e seus resultados encaminhados à FAPESP. Se o relatório não for considerado satisfatório, a Fundação poderá levar a cabo seu próprio processo de investigação. As medidas punitivas que podem ser impostas pela FAPESP aos autores de más condutas científicas incluem, entre outras, o envio aos autores de uma carta de repreensão, a suspensão temporária da prerrogativa de solicitar auxílios e bolsas; e a devolução de recursos concedidos pela Fundação aos autores para a realização da pesquisa a que se relacionam as más condutas.

Leia trechos do texto de trabalho “Sobre a integridade ética da pesquisa”, de Luiz Henrique Lopes dos Santos, professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, coordenador adjunto de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP e coordenador científico da revista Pesquisa FAPESP.

“No que concerne às regras vigentes de formação de reputações e distribuição de oportunidades, recompensas e sanções profissionais, o conceito-chave é o de autoria. Os pesquisadores ganham oportunidades de realizar suas pesquisas e são profissionalmente recompensados ou sancionados na medida de sua reputação científica, que é, por sua vez, estimada principalmente pelos resultados científicos que já obtiveram e comunicaram como sendo seus resultados. Dado um relato científico, pressupõe-se que, salvo indicação expressa em contrário, os pesquisadores expressamente identificados como seus autores apresentam tudo o que é relatado como sendo resultados que julgam ser originais de seu próprio trabalho de pesquisa. Ações que, intencionalmente ou por negligência, contrariem esse pressuposto contribuem para o estabelecimento de falsas reputações e para a distribuição cientificamente injustificada de oportunidades e recompensas. Nessa medida, minam as condições que hoje garantem a possibilidade do trabalho coletivo eficaz de construção da ciência e constituem condutas eticamente inadequadas do ponto de vista da integridade da pesquisa. Entre elas, a que é considerada mais grave é o plágio de textos ou ideias; além do plágio, a falsa indicação de autoria – a omissão, entre os autores de uma comunicação, do nome de alguém que fez uma contribuição cientificamente significativa para a obtenção dos resultados apresentados ou, inversamente, a inclusão do nome de alguém que não fez nenhuma contribuição dessa natureza.”

“Seja como for, ainda que o número de más condutas tenha crescido apenas proporcionalmente ao crescimento do sistema de pesquisa, na medida em que os efeitos das más condutas passaram a repercutir no trabalho de um número cada vez maior de pesquisadores, eles passaram a repercutir, em virtude de um efeito dominó, na qualidade dos resultados de um número cada vez maior de pesquisas. E, o que talvez seja o mais grave, passaram a prejudicar mais seriamente a fidedignidade pública da ciência. A ciência vive de sua credibilidade, não só porque depende cada vez mais de investimentos públicos e privados, mas principalmente porque, sem essa credibilidade, perde sua principal razão de ser: seu potencial de fazer diferença na vida das pessoas, por meio da ampliação do estoque de seus conhecimentos e dos meios de orientação racional de suas ações.”

“A caracterização de uma ação particular como boa ou má conduta científica muitas vezes depende de juízos que são de natureza propriamente científica e nem sempre são triviais. Nem sempre é trivial, e frequentemente requer perícia científica, distinguir que dados são relevantes e que dados não são relevantes para a confirmação ou não de uma hipótese científica, quando se trata de estabelecer se um certo artigo relata com fidelidade todos os dados relevantes para a ponderação do grau de corroboração que propõe para suas hipóteses. Nem sempre é trivial, e frequentemente requer perícia científica, determinar se as ideias expostas por um autor como suas são suficientemente semelhantes a ideias de outro autor para que essa exposição seja considerada como possível caso de plágio. Nem sempre é trivial, e frequentemente requer perícia científica, distinguir o erro involuntário, o erro por imperícia, da má conduta intencional e da má conduta negligente. E nem sempre é trivial, e frequentemente requer muita sensibilidade científica, distinguir o que é um desvio cientificamente injustificado de práticas científicas geralmente aceitas e o que é um desvio inovador cientificamente valioso.”

“Em um extremo do espectro, estão os países em que reina, até agora, a anarquia. É o caso do Brasil, mas também de países de peso científico considerável, como a França. Neles, não há políticas sistemáticas de promoção e prevenção, não há mecanismos institucionais permanentes destinados a lidar com a questão da integridade. Eventuais alegações de más condutas são tratadas de maneira casuística, não havendo procedimentos previamente definidos e concebidos para garantir investigações e decisões imunes à percepção de enviesamento, por corporativismo ou conflitos de interesse, e respeitadoras da reputação dos investigados e de seu direito a presunção de inocência.”

A íntegra do texto de trabalho está disponível no site da FAPESP
Veja aqui o Código de boas práticas científicas, em pdf

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