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João Filho

Carros invisíveis atropelam transeuntes distraídos

Uma fábula

juliana c silva

Na notícia, meio escondida em um canto de site, três linhas apenas com o título em itálico, eu vi um velho pesadelo consumado. Intuitivamente, já desconfiava de uma seita oculta de Possantes Atropeladores, pois só a nata poderia possuir tais.

Esse desconfiar vinha desde menino. O que era imaginação pueril foi se organizando logicamente, como é dado àqueles de educação exemplar de que se orgulham os melhores. Porém é homem-feito que leio a notícia. E se veio assim como microconto, sabia, era dissimulação. De um modo ou de outro eles sempre deixaram pistas esses anos todos. Retrospectivamente analisando, era como se quisessem que eu de alguma maneira soubesse. Às vezes se exercitavam com distorções grosseiras como ufos e afins. Eu os persegui e temi como um curioso, crente que não estava sendo observado. Notícia lida, fiquei mais temeroso, pois nunca tinham sido tão explícitos e tão próximos – a vítima foi uma fêmea do meu círculo de relações.

Pela minha vivência, eu os supunha invisíveis e os conhecia parcialmente, pensando que o mesmo se sucedia com eles em relação a mim. Quase sempre atuavam em pontos nobres. Superiores preferiam superiores. Honra perversa. Pela dinâmica da técnica estavam mais silenciosos, eu pressentia.

Pelo estado dessa última vítima, presumia-se o estilo. A cada assassinato, procurei conversar com os peritos. Com o tempo, percebi que agiam simulando uma forma aleatória, talvez para enganar os desatentos. Pouquíssimas eram vítimas suas. O tempo entre um e outro ataque espaçava-se.

À medida que eu recolhia os dados, via que eram brutais na feitura, mas refinados no acabamento. Presumi que os Possantes utilizados eram de fabricação única, cada um possuía o seu. Podiam atacar místicos genuínos, um gênio sem um tostão, um Nobel em qualquer área do conhecimento. Ou seja, essa fauna dotada do mais elevado espírito, que contempla e investiga a Natureza e os passos do Ser. Nunca a vulgaridade das celebrities. O válido, percebi, era a aristocracia. E dessa eu fazia parte, contudo, discretíssimo.

No último ataque houve uma testemunha, que da varanda de sua mansão viu ao longe um corpo ser arremessado tão subitamente que beirou alucinação, seguido de um som agudo – como algo que se desloca no ar numa velocidade impressionante.

Ela vinha me visitar.

A perícia encontrou marcas de pneus na pavimentação e o corpo desfigurado.

Evitei sair durante um mês. E quando o fiz foi de carro, não estacionando em lugares onde era preciso andar em espaços abertos.

Findado o mês, recebi uma caixa sem remetente. O serviçal disse ter sido entregue pelo correio. Com um cuidado burro, abri: uma edição luxuosa e sóbria, em couro e papel, lacrada com uma fita, em in-4 surgiu.

Era sobre a seita.

Não havia iluminuras.

Em um estilo direto, não citava nomes, genealogias. Tão somente propósitos. Argumentava-se a sutileza da agressão. Não havia juízos morais. O que se lia secamente era a técnica para o instante brusco.

Na última página, uma carta. Sabiam mais de mim do que eu deles. Diziam da inutilidade de se acionar qualquer autoridade, mesmo serviço secreto, pois eu seria dado como doido, ou, com muita boa vontade, um excêntrico.

Pendulei entre o pânico e a indolência absoluta.

Como deixaram exato no texto que só “abordavam” pedestres, então eu não deveria me preocupar com ambientes fechados. Entretanto, longas caminhadas em lugares semidesertos eram vitais para mim. A invisibilidade torna os condutores transparentes, daí que ao guiar um Possante eles não apareciam. Quem, onde e como podia se dar a agressão eu não sabia. Comecei a ponderar sobre o imprevisível.

Por que eu? Difícil foi contatar alguns aristocratas. Como abordá-los foi outro problema, eram meio antípodas como eu. Falei com três sobre um determinado livro, se haviam recebido algo semelhante. Não haviam.

Mesmo sendo bem posto, privilegiado no meu mirante, fiquei desnorteado. Paranoico, tranquei-me na casa perto do bosque e pus-me a vasculhar em todos os meios de comunicação disponíveis.

Impossibilitado de andar em lugares abertos, garagens eram portos para esse caminhar dentro de limites táteis. Carros, garagens, estações, conglomerados, aeroportos. Viver tubular para os mais mecânicos. Degenerativo para os catastróficos. Enfim, eu sobrevivia.

Consultando tomos antigos numa noite insone e suarenta, encontrei referências de certo manuscrito, possivelmente redigido durante os 1200, por um grupo de homens e mulheres que conceituavam o mecanismo da agressão. Eram a nata da época. Rigorosos em todos os níveis do conhecimento. Buscando alucinadamente saber mais sobre a seita, devastei bibliotecas, sábios plurilinguísticos, geografias e culturas. Vi que esse mesmo grupo teórico-prático aparecia ao longo das Eras. Imperceptíveis para olhares neófitos. O ano marco que encontrei foi apenas mais uma aparição. Fiquei esgotado.

Veio a primavera, já estava fisicamente recuperado, saudável até. Mas ainda em um viver tubular, persisti nos cuidados. Por que eu? A seita dos Possantes Atropeladores era um fato. Eles, os atuais, se autointitulavam com outro nome, mas preferi este.

Meses se vão, consigo regular a neurose, recebo outro livro-carta. A princípio, gelei, mas abri e li. Eu tinha sido um dos escolhidos-vítima por ter nascido inexplicavelmente com o gene da neutralização da seita. Em cada geração nasciam alguns. Esses, como eu, sofreram a mesma tática. Eles, os Possantes, possuíam as suas leis eternas e só matavam adultos. Os executados muitas vezes os ignoravam. Aqueles que não ignoraram não sei dizer se desistiram ou se se entregaram. Não tive notícias de outro que tenha sobrevivido.

Para eles eu não passava de um vermezinho. Não tinham pressa, ou saísse ou passaria o resto da vida nesse viver tubular, que, mesmo com todos os esforçosos lenitivos, já me topava um limite. Meu caso não poderia ser resolvido com o ar das montanhas, de florestas, eu, desgraçadamente, precisava de planícies e estradas, serras e estradas, cidades e estradas. Sem isso, lenitivo que fosse, era inútil.

Mesmo me armando pesadamente, sabia que eram invisíveis. Mesmo treinando acertar nas rodas, como conseguiria? Eram poderosos ao massacrarem, semissilenciosos. De século a século, eles alcançaram o ápice. Que tecnologia era essa? Não era a diária, mesmo complexa, das ruas. Era o inusitado. Que faria eu? Desistir ou enfrentar?

Amofinei no meu viver tubular, daí este relato.

Eles, às vezes, se exibem para mim, e do meu mirante – casa, aeroporto, prédio, conglomerados – testemunho a eficiência da técnica e não mais me assombro.

João Filho, poeta e escritor, participou de algumas antologias de contos, dentre elas Contos Sobre Tela e Geração Zero Zero, fricções em rede. Publicou em 2004, Encarniçado, contos. Em 2008, Três sibilas, poesia, e 2009 Ao longo da linha amarela, contos. Edita o blog www.voosempouso.blogspot.com

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