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Bioquímica

A grande oxigenação

Rochas indicam que oxigênio só passou a se acumular na atmosfera há 2,5 bilhões de anos

carlos alberto rosiere / ufmgDetalhe de rocha com depósitos de ferro oxidadocarlos alberto rosiere / ufmg

Quem não gosta da Terra? É, disparado, o lugar mais hospitaleiro do sistema solar. Incontáveis formas de vida, de incrível complexidade, ocupam cada cantinho do globo, das profundezas do mar ao topo das montanhas mais altas. A variedade biológica – a famosa biodiversidade – é um dos mais apaixonantes aspectos do planeta. Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo – na verdade, a maior parte do tempo – em que tudo o que havia na face da Terra eram seres unicelulares e simples. Bactérias.

A diversidade de espécies só começou a aumentar depois que um evento radical mudou a equação da vida terrestre e elevou drasticamente a habitabilidade de nosso mundo, permitindo, em última instância, que viéssemos a existir. Esse evento foi a elevação dos níveis de oxigênio na atmosfera, que deixou registros em rochas muito antigas. Um grupo internacional de pesquisadores, do qual participou um brasileiro, analisou amostras dessas rochas de diferentes regiões do planeta e conseguiu agora fortes indícios de quando e como teria acontecido essa transformação, que fez as taxas de oxigênio passarem de indetectáveis na atmosfera primitiva para os 20% encontrados na atmosfera atual.

Acredita-se que tenha sido a própria vida que tenha originado todo esse oxigênio e promovido a mudança na composição da atmosfera da Terra. Essa alteração teria se iniciado, segundo os paleontólogos, quando emergiu durante a evolução dos seres vivos a capacidade de realizar fotossíntese. Comumente associada às plantas, a habilidade de produzir oxigênio também é comum a bactérias como as algas azuis, seres unicelulares que vivem nos oceanos e, apesar do nome, são mais semelhantes às bactérias do que às algas. A grande virtude da fotossíntese é converter a luz solar e o dióxido de carbono em energia para o metabolismo. Como subproduto, é liberado oxigênio.

Não foi fácil, contudo, introduzir esse gás em grandes quantidades na atmosfera. Por muito tempo a composição do ar permaneceu basicamente a mesma porque o oxigênio, altamente reativo, interagia rapidamente com outras substâncias presentes no mar, oxidando-as. O principal alvo era o ferro proveniente de rochas que se encontrava dissolvido na água. O resultado era a precipitação do ferro oxidado, que se depositava no leito oceânico. Assim, praticamente não sobrava oxigênio para a atmosfera. Somente quando todo o potencial para oxidação se esgotou – as rochas e o oceano já não tinham mais como absorver o oxigênio – é que esse gás finalmente começou a se acumular no ar.

Foi justamente em formações ferríferas espalhadas pelo mundo que os pesquisadores liderados por Kurt Konhauser e Stefan Lalonde, da Universidade de Alberta, no Canadá, encontraram pistas para recontar essa história toda. Em artigo publicado em outubro no periódico científico britânico Nature, eles conseguiram estabelecer uma data para a transição da atmosfera antiga para a nova: o acúmulo de oxigênio no ar teria começado 2,48 bilhões de anos atrás – a Terra tem hoje cerca de 4,6 bilhões de anos – e foi relativamente rápido.

Para determinar como e quando essa mudança ocorreu, os pesquisadores analisaram a distribuição do elemento químico cromo (Cr) e de seus isótopos em formações ferríferas. A ideia é que a distribuição desse e de outros elementos químicos nas rochas guarde pistas das características dos oceanos com os quais esses elementos tiveram contato em tempos antigos.

Na trilha do cromo
Os pesquisadores buscaram amostras de rochas ricas em ferro em todas as partes do mundo – inclusive no Quadrilátero Ferrífero, em Minas Gerais. Quem ficou incumbido de levantar e analisar o material brasileiro foi o geólogo Carlos Alberto Rosière, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

carlos alberto rosiere / ufmgFormações rochosas da Austráliacarlos alberto rosiere / ufmg

Como as rochas tinham idades diferentes, foi possível inferir as mudanças na atmosfera e no ambiente oceânico ao longo do tempo. Concluiu-se que cerca de 2,5 bilhões de anos atrás grandes quantidades de Cr foram extraídas dessas rochas e transportadas do continente para o oceano por águas superficiais extremamente ácidas, contendo ácido sulfúrico produzido a partir da decomposição da pirita (sulfeto de ferro). Como essas reações nas rochas são explicadas principalmente pela presença de bactérias aeróbicas acidofílicas – que necessitam do oxigênio do ar para viver e são capazes de sobreviver em ambientes ácidos –, supõe-se que uma quantidade significativa de oxigênio já tivesse se acumulado na atmosfera do planeta.

Há evidências, porém, de que a produção desse gás tenha começado bem antes, cerca de 3,5 bilhões de anos atrás, com as algas azuis, também conhecidas como cianobactérias. Por um longo período, no entanto, o oxigênio liberado por essas algas mal alcançava a atmosfera por interagir rapidamente com o ferro de origem vulcânica dissolvido no mar, originando as grandes formações ferríferas que hoje se encontram nos continentes e abastecem as mineradoras e a indústria siderúrgica. “Depois dessa fase inicial de produção de oxigênio, que durou quase 1 bilhão de anos, o processo de transformação da atmos-fera pode ter sido bem rápido”, afirma Rosière. “Em 100 milhões a 200 milhões de anos, ela já apresentaria grandes quantidades de oxigênio.”

Esses indícios de que uma atmosfera rica em oxigênio já existisse há 2,5 bilhões de anos são os mais antigos já identificados até o momento. E são compatíveis com análises anteriores, baseadas em outras evidências desse importante evento na história da Terra, chamado de grande oxigenação. Contudo, os pesquisadores admitem que a aceitação dessas conclusões não é geral. “Alguns podem dizer que as características que encontramos nas formações ferríferas indicam condições locais, mas não a de todo o planeta”, explica Rosière.

Somente mais evidências poderão con–firmar que esse é um sinal do episódio que permitiu o eventual surgimento de criaturas multicelulares, como os animais de grande porte e os seres humanos. “Na geologia, uma andorinha ou duas não fazem verão. Existe uma grande quantidade de dados que são passíveis de questionamento ou de interpretação alternativa. Então é preciso ter uma somatória convergindo numa dada direção”, diz Rosière. “Não dá para dizer: agora estamos satisfeitos, as coisas estão resolvidas.”

Artigo científico
KONHAUSER, K.O. et al. Aerobic bacterial pyrite oxidation and acid rock drainage during the Great Oxidation Event. Nature. 19 out. 2011.

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