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Resenhas

Da fábrica à academia

Uma arqueologia da memória social – Autobiografia de um moleque de fábrica | José de Souza Martins | Ateliê Editorial, 464 páginas, R$ 60

Escrever sobre o “outro”, ainda que amparado pelo distanciamento e pela aparente e às vezes enganosa neutralidade, é difícil. Imagine-se falar sobre o próprio “eu”. Situar-se em universo onde a representação de si mesmo é, em larga medida, construída pelo sujeito que fala e pelos pares que compartilham, de forma permanente ou ocasional, o mesmo cenário de convivência social. Cada qual com suas experiências que transitam entre o real e o aparente, quase sempre experiências de vida intransferíveis. Falar sobre si mesmo é rastrear o próprio passado, debruçar-se sobre lembranças da infância e da juventude, a partir de uma visão amadurecida pelos anos já vividos.

É este desafio que José de Souza Martins enfrenta ao escrever Uma arqueologia da memória social – Autobiografia de um moleque de fábrica. O leitor ficará sabendo o que é ser filho de imigrantes pobres (portugueses e espanhóis) que chegam ao país sem qualquer apoio e passam a viver, por assim dizer, à margem do que há de mais expressivo na cena brasileira. Ficará sabendo também o que é ser neto de um homem estigmatizado em Portugal por ser filho espúrio de um impiedoso padre de aldeia. Familiarizar-se-á com o cotidiano de uma família que, ao transitar por áreas rurais e urbanas do estado, acaba por dividir a vida de um menino ainda em crescimento.

Nas memórias do autor, o rural ganha duas faces bem delineadas: há o rural acolhedor, repleto de “bom” caipirismo. É o rural dos arredores de Pinhalzinho, onde passa dias de encantamento na casa rústica dos avós maternos espanhóis. E há o rural que é lembrado para ser esquecido, distante oito quilômetros de Guaianases, onde vive, em companhia da mãe e de um padrasto hostil, “longe da civilidade e das vênias profundas do respeito pelo outro, no sentido profundo e ritual do decoro”. Já o urbano que Martins nos revela é o da periferia da metrópole, o do operariado, com seus encantos e desencantos. Nesse cenário em que pobrezas financeira e intelectual estão associadas é que o autor procura amealhar os seus primeiros e parcos rendimentos destinados prioritariamente à família. De início, seu campo de trabalho é a rua; depois, a fábrica onde o já adolescente capta o clima político que Vargas tece no centro do poder e que ecoa, lá embaixo, onde estão os operários.

Depois a busca pela escolarização que o levou à obtenção do diploma de professor primário, título com o qual ingressou no curso de ciências sociais da Universidade de São Paulo (USP). A autobiografia tem aí seu ponto final. É preciso que se diga, porém, que José de Souza Martins oculta aos leitores o perfil de uma trajetória intelectual brilhante: sociólogo que percorreu todos os degraus da vida acadêmica na USP, onde, ao se aposentar, recebeu o título de professor emérito. No exterior foi professor visitante da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, e da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, além de professor, na mesma universidade, da Cátedra Simón Bolívar.

É imperioso grifar a elegância da linguagem, que descarta as palavras e os enunciados mágicos caros aos cientistas sociais mas de difícil deglutição pelo leitor. Engana-se, todavia, quem considere o autor descomprometido com essa visão acadêmica. Seu olhar é o rigoroso olhar de um acadêmico talentoso, sem grandes preocupações com as fronteiras que separam e empobrecem as reflexões da sociologia, da antropologia, da história.

A autobiografia de Martins pode ser lida como uma crônica deliciosa das peripécias de um moleque de fábrica que se torna um respeitável acadêmico; ou como um modelo teórico que dá conta dos múltiplos aspectos que compõem uma trajetória de vida; ou, então, como uma crítica direta, pontual, nem sempre sutil, de uma sociedade tão desigual como a brasileira. A escolha caberá, naturalmente, ao leitor.

João Baptista Borges Pereira é antropólogo, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) e professor pleno de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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