Imprimir PDF Republicar

A pátria em sons

O homem que precisou inventar um Brasil

Pesquisas contestam visão da obra de Villa-Lobos como mero nacionalismo exótico

AFP PHOTO / ARCHIVESVilla imita “chorão” e “quadro cubista” em ParisAFP PHOTO / ARCHIVES

Na contramão do que Brecht colocou na boca de seu Galileu, às vezes “infeliz é o herói que precisa de seu país”. Uma corrente recente de estudos musicológicos vem revelando que Heitor Villa-Lobos (1887-1959) foi, de certa forma, “vítima”, ainda que por vontade própria, dessa inversão ao esforçar-se em assumir o papel do “messias nacionalista” tão aguardado pela modernidade brasileira a partir dos anos 1920. “Uma escuta meramente nacionalista de sua obra é restritiva e ligada a um contexto social e histórico que não é mais o nosso. É preciso desconstruir o elo entre a música de Villa e a edificação de um Estado-nação em favor de uma análise propriamente musical”, afirma o sociólogo Leopoldo Waizbort, professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). O pesquisador está finalizando o projeto Villa-Lobos nacional e cosmopolita, feito na Universidade de Berlim com uma Bolsa no Exterior concedida pela FAPESP.

“O nacional em Villa é uma construção interessada. A escolha nacionalista estava enraizada em chão histórico e ele só foi ‘nacional’ em meio a um contexto que o modelou dessa maneira. Quando ele compõe o Brasil nos Choros, responde a uma exigência que vinha do público, que é quem o sustenta. Trata-se menos de uma brasilidade que se exprime musicalmente em sua obra do que uma obra que pretende criar e revelar uma identidade musical para a nação”, explica. Em outras palavras, não é do estilo nacional que brota o estilo individual do músico, mas antes um estilo individual que modelou um estilo nacional. “Villa queria achar seu lugar na música universal. Mas ao chegar a Paris, em 1923, apesar da bravata de que ‘vinha para ensinar e não para aprender’, descobriu que era apenas ‘mais um’ em meio a muitos músicos também vindos de países periféricos e com obras semelhantes. Ficou então claro que a única chance de se diferenciar era ‘vender’ seu produto como compositor nacional. Foi na França que Villa virou ‘brasileiro’”, observa o pesquisador. Passou a explorar o exotismo da “brasilidade” para garantir sua sobrevivência pessoal e ter a chance de mostrar ao público o que tinha a oferecer como compositor.

Desde o começo Villa percebeu que sua carreira de músico e, logo, a possibilidade de compor dependiam de um público que o sustentasse, seja em Paris, seja no Brasil, onde se buscava há tempos alguém que fosse o ícone musical que faltava no processo de invenção da moderna cultura nacional. “A valorização do exótico, tão forte para um artista estrangeiro vindo da remota América, tinha eco em todos os círculos da capital francesa. Ao mesmo tempo, os brasileiros que conviviam com Villa na França, como Tarsila do Amaral ou Sérgio Milliet, adotaram uma atitude positiva em relação à produção de arte ‘nacional’. Foram esses elementos que convenceram o compositor da imperiosa necessidade de sua conversão, de sua transformação em compositor de música de caráter nacional”, diz o antropólogo Paulo Renato Guérios, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), outro integrante do grupo “revisionista” do nacionalismo de Villa e autor de Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinação (FGV, 2003).

Breitenbach/Pix Inc./Time Life Pictures/Getty ImagesO compositor ao piano, em 1957: exotismo externo escondia experimentosBreitenbach/Pix Inc./Time Life Pictures/Getty Images

Assim, o fato de o compositor ter começado a compor músicas com sotaque brasileiro a partir de 1923 deveu-se não à descoberta de que ele teria uma essência brasileira, mas sim a um processo de transformação acionado por uma série de mecanismos sociais de atribuição de valor. “Por isso o projeto dos franceses para uma arte brasileira foi aceito por ele com naturalidade. Ele queria ser aclamado pelo establishment parisiense, que respeitava”, nota Guérios. “Basta perceber que não foi à nação brasileira que a música de Villa deu corpo em forma de som, antes foi o contrário: sua música imaginou uma nação e a sonorizou, inclusive imaginando-a contraditória e complexa, com suas florestas, assobios, danças, índios, crianças”, lembra Leopoldo. 
Não é o Brasil, então, que modela e cria essa música, e sim essa música que modela e cria o, ou “um”, Brasil. “Ou, em outros termos: não é do estilo nacional que brota o estilo individual, mas antes é um estilo individual que modela um estilo nacional”, diz o pesquisador. A repercussão foi ainda maior quando os músicos populares, como Tom Jobim e outros, foram beber nessas sonoridades e, por sua vez, criaram sons como a bossa nova, ouvida no globo como a música brasileira por excelência, um mérito oculto de Villa.

“Há muitos desafios para retirar o verniz ideológico e ufanista que cobriu por anos a obra de Villa-Lobos, em especial a de que o seu maior mérito esteja em seu caráter nacional, identificável pelo uso de melodias folclóricas e usos eventuais de ritmos da música popular”, observa o musicólogo Paulo de Tarso Salles, outro notável “revisionista”, professor da ECA-USP e autor da pesquisa Villa-Lobos: processos composicionais. “Também é preciso mostrar para as pessoas que as qualidades de certas obras de Villa não são resultado de mero casuísmo, mas de trabalho de composição sintonizado com as grandes questões musicais da época e que o suposto ‘caos’ de sua música não é fruto de ‘ingenuidade’ ou falta de técnica, mas uma feitura intencional que exigiu uma carga pesada de trabalho e estudo. Negou-se a sua obra uma densidade intelectual: para os estrangeiros, era apenas um produto caótico, fruto do acaso, como tudo que aconteceria no Brasil”, observa. Daí, avalia Salles, negar-se a ele e à sua obra o mesmo estudo respeitoso dado a Stravinsky e Bartók, com quem a sua produção dialoga. “Um desdobramento inesperado de sua estratégia em se transformar em símbolo nacional e exótico, que acabou estigmatizando a sua música. Afinal, na sua época, não havia uma musicologia local capaz de dar conta do que ele fazia e tudo se reduziu ao nacionalismo. Ele sofreu com a falta de debates e com a mitologia que ele construiu e que construíram ao seu redor.”

Para Salles, ouvir Villa é ir além das melodias e dos ritmos sincopados dos chorões, identificáveis em algumas peças, elementos superficiais que dão cor local, mas não são os aspectos mais importantes de sua obra. “Ele criou música em que se ouvem fisicamente o som, a temperatura da paisagem sonora brasileira e sua imagética. Afinal, era um brasileiro. O mais importante, porém, para entender suas composições é a sua autonomia. Ele teve formação musical, mas nunca foi obrigado a se ligar a uma ‘escola’ musical, não precisando dar satisfações sobre seus processos composicionais. Assim, suas escolhas estéticas se baseavam apenas na sua visão, o que faz dele um fundador de um modo de compor baseado no ‘eu escuto e faço’, que será visto como caos e barbarismo”, avalia Salles.

Bettmann / CorbisVilla com Mindinha nos EUA, em 1948, diante do cartaz da estreia da opereta que fez para os americanosBettmann / Corbis

Fugindo do destino
Logo, o nacional de Villa é o fato de ele ser brasileiro, de ter convivido com músicos populares e ter uma impressionante segurança de criar, fugindo ao destino de boa parte de seus contemporâneos, sufocados por escolas e por modelos estrangeiros, ainda que não se possa negar sua capacidade de “deglutir” o que se produzia de moderno na Europa. “Mas o elemento nacional não era o que mais o interessava”, diz Salles. O que acabou fazendo de Villa um “messias nacionalista” imperfeito que não agradou a nacionalistas como Mário de Andrade, para quem a pesquisa do folclore como fonte de reflexão temática era essencial para a criação de uma música nacional que, num segundo momento, seria universalizada pela sua difusão global. Para o autor de Macunaíma, porém, o exotismo era um “pecado” imperdoável, pois destruía a singularidade da nação brasileira. Assim, após ter chamado Villa de “Homero brasileiro”, Mário afastou-se dele, celebrando Camargo Guarnieri como o verdadeiro músico nacional.

Ao afirmar que “o folclore sou eu”, Villa deixou claro que não estava disposto a se sujeitar ao esperado pelos modernistas paulistas. “Ele é o criador que inventa sua música e inventa o folclore em um único e mesmo ato. Pouco importa que o canto do uirapuru não seja reproduzido por ele com precisão ornitológica como teria feito Messiaen. Importa, sim, a eficácia simbólica como marcador identitário. Está pressuposto que aquele som é o canto do pássaro; está pressuposto que o canto do uirapuru é índice do Brasil; está pressuposto que o uirapuru não canta como os pássaros de lá; e está pressuposto que os ouvintes sabem reconhecer e legitimar tudo isso”, observa Leopoldo. “Longe de tirar o mérito musical de Villa, isso só o reforça, pois apesar de todos esses pressupostos, se não fosse a força expressiva daquela música, tudo desmoronaria.” O compositor sempre deu atenção aos procedimentos composicionais, mas tudo foi deixado de lado em favor da mitologia.

“Para entender melhor isso, basta ouvir os Choros, dos anos 1920, e as Bachianas brasileiras, escritas entre 1930 e 1945. Nos primeiros, tudo é ousadia; nas outras a sensação é de um conservadorismo palatável. Villa jurava que as duas séries expressavam o Brasil. Mas como se são tão diversas? É como se pode perceber que o ‘nacional’ é uma construção, variável, fruto da imaginação individual do compositor e não reflexo do ‘povo’ ou do ‘folclore’, ambos por sua vez outros constructos ideológicos, históricos e sociais”, nota o pesquisador. A obra Amazonas é igualmente emblemática. “Ele foi além de tudo o que havia sido feito em termos de Brasil, mas o passo decisivo não foi a utilização de temas ou melodias brasileiras, mas a criação de uma sonoridade, de texturas que, metaforicamente, podem ser associadas com sons ouvidos nas florestas. O mais provável é que o título nos empurre para esse campo. Mas não se pode reduzir a isso as potencialidades musicais da partitura, onde estão as verdadeiras forças sonoras”, nota Salles. O pesquisador colocou a gravação da peça para públicos diversos, incluindo-
-se crianças, sem citar o compositor ou o título. “As pessoas ouviram de ‘florestas’ ao deserto do Saara, ‘vítimas’ do mistério maravilhoso da música, que pode tanto exaltar multidões, como o Wagner tocado durante o nazismo, como nos fazer sonhar.” Para tudo isso não é preciso algo tão restrito como um país, mas talento, uma virtude universal.

O Projeto
Villa-Lobos nacional e cosmopolita (nº 2010/01907-1); Modalidade Bolsa no Exterior; Co­or­de­na­dor Leopoldo Waizbort – USP; Investimento R$ 31.354,93 (FAPESP)

Republicar