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Denilson Cordeiro

Filosofia

[minirromance-deformação]

Ao Paulo Arantes
“É preciso muito mais, para perder
o medo de rir da filosofia, de si mesmo
e do mundo – é preciso também aprender a rir através da filosofia.”
[Bento Prado Jr., Por que rir da filosofia?]

Catarina Bessell

Geral
— Professor, por que em filosofia o aluno está sempre errado?
Não é bem assim.
— Tá vendo, errei de novo!

Patrística
O menino de sete anos chegou da escola e foi logo perguntando pra mãe:
— Mãe, o que é fé?
A mãe, emocionada, pediu ao filho que se sentasse e começou muito calmamente a tentar dar uma ideia do que era, na sua modesta concepção, a fé. Falou de Deus, da Criação, da Bíblia e da condição dos homens na Terra. Depois de muito explicar e não sabendo mais que rumo dar à conversa, intrigada, a mãe quis saber do filho o motivo da pergunta. Ele, entre displicente e enfadado, disparou:
— Ah, é porque um menino lá na escola me chamou de “fé da puta”.

Ética
— Tem que comer mesmo, nós que somos fortes temos que comer, ainda mais nesta hora do dia, minha mãe sempre dizia isto. Não adianta ficar com essas coisas de regime. Não é que se deva exagerar, comer sem limite, mas ficar sem comer também não dá. O importante é que o 37 esteja funcionando, hein?! Sabe, com 20 ou 30 anos eu também era galinho, você já foi, ele já foi. Agora a gente sabe tratar uma mulher, porque você sabe que a mulher vai onde o homem quiser, não é? Pra ter um casamento de uns 20 ou 30 anos, precisa tratar bem a mulher, fazer uns carinhos, fazer ela gozar. Tem que saber ir devagar, saber segurar, porque aí é aquela maravilha. A molecada faz que nem galo, eu já fui galinho, tudo muito rápido e sem aproveitar, hoje são outros quinhentos.

Política
(a partir de uma fábula afegã)

É noite e um homem está procurando alguma coisa sob a luz de um poste de iluminação pública. Um outro passa e pergunta:
— O que faz aqui?
— Procuro minhas chaves.
O outro começa a ajudá-lo. Passado algum tempo de busca infrutífera, pergunta:
— Mas você tem certeza de que as perdeu aqui?
— Não, eu as perdi lá adiante.
— E por que procura aqui?
— Porque aqui tem luz, lá não.

Estética
à maneira de Julio Cortázar

Do pincel sobre a tela, sai um traço que acaba de compor uma imagem, contorna o canto, passa por um ponto, medra pelo meio da mesa, corre pelo chão, ladeia os ladrilhos, pende pela porta, avança pelo átrio, cai e corre pelo corredor, escoa escada afora, ganha a gota suspensa na torneira do tanque, joga-se no jardim com as sementes secas, fixa uma flor, retoma a rota, meticulosa move-se pelo meio-fio. Já na rua, toma um táxi, cruza com um caminhão, deixa-se disfarçar na carroceria, cai no colo de uma criança até tomar pelos trilhos o caminho do cais. Persegue a proa. Distrai-se redesenhando um rosto até aportar no píer. Margeia a quina, salta num contêiner, arrisca-se sobre uma carga e, estrangeira, segue serra acima. Avança no labirinto da cidade até encontrar o movimento de uma mulher, alcança-a pela costura da calça e chega ao fio do seu olhar no momento exato em que ele se concentra no traço do artista que acaba de compor uma imagem.

Lógica
— Um cárcere pode ser maior do que o mundo. Emparedado pelas exigências de normalidade, o desajustado, mesmo percebendo que a sua loucura é o resultado da tensão entre as exigências do mundo do consenso e aquelas da ordem do seu desejo, não encontra ressonância para suas palavras senão lá onde vê reforçado ainda mais o seu confinamento. Poderia ser outra a história de um homem comum?

Educação
— Acordou certa manhã sem a mínima vontade de ir à escola. Queria continuar a leitura iniciada na noite anterior e deixar-se levar pelo encantamento do mundo criado pelo escritor. Não teve como convencer sua mãe que, envolvida com a preocupação de educá-lo, não poderia ter olhos para seus desejos cujo princípio para ela era o de estarem de antemão errados ou, quando muito, coalhados por uma imperfeição congênita, daí o trabalho corretor da escola. Naquele dia, teria sido melhor ficar em casa, mas até hoje sua mãe acha o contrário. Ela não suportaria ter sido diferente. E ele?

Iniciação
— Um estudante de filosofia está diante de um telefone público e, embora entre eles não haja nenhum parentesco, espera que, de algum modo, lhe devolvam as certezas. Sabe que não será fácil, mas a impossibilidade de interrogar indefinidamente o mundo o faz ter forças para suportar o frio da dúvida. Visto de longe, com roupas normalmente impróprias, o estudante de filosofia poderia responder sobre a necessidade do imperativo categórico na estrutura da razão prática, mas com o telefone soando, nunca sabe o que fazer. Atender ou não? Que dizer? Será um pedido de socorro? Blefe? O caminhão em alta velocidade o distrai. O jornaleiro desconfia se tratar de um protestante, um pregador na iminência do sermão. Embora sejam só hipóteses, é provável que o ônibus chegue primeiro. São três horas e o vento dos carros traz um forte cheiro de combustível queimado, um pedinte passa pelo estudante e não pede nada, tampouco o olha, só abaixa-se, pega uma bituca e continua seu caminho. O suor escorre pela camisa preta fechada até o colarinho, o paletó causa um desconforto suportável, a calça de tergal assa um pouco a perna. O sujeito imprime ao objeto, para o bem e para o mal, suas idiossincrasias, pensa. Não há verdade que tenha chegado ao objeto e que não tenha antes passado por um tipo de fé na lucidez. O guarda de trânsito não pode entender a persistência do estudante de filosofia, como se algum dia se desse ao trabalho de se perguntar por tanto. Quem pensa que o estudante sofre está certo, mas deixa de estar se imagina que alguém deve surgir em seu socorro. Afinal, quem seria capaz de afirmar que esta é a parada certa para o ônibus que deveria levar o estudante de filosofia para o seu destino?

Denilson Cordeiro é professor de filosofia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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