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Resenhas

Getúlio pelo olhar de um repórter

Getúlio – Dos anos de formação à conquista do poder (1882-1930) | Lira Neto | Companhia das Letras, 664 páginas, R$ 52,50

Lira Neto é repórter. E a magnífica trilogia sobre Getúlio Vargas, a maior personalidade política do século XX no Brasil, cujo primeiro tomo foi lançado em maio pela Companhia das Letras, é seu grande projeto de vida. Iniciado há dois anos, resultará em três volumes que terão, cada um, ao menos 600 páginas. Completa, a trilogia ultrapassará 1.800. É projeto para cinco anos.

Este primeiro volume cuida do período de formação até a Revolução de 1930, quando Getúlio assume o poder. O segundo, a ser lançado em 2013, tratará do período entre 1930 e 1945, época em que ocupa o poder ininterruptamente, a partir de 1937 como ditador. O terceiro tratará dos anos de exílio, de seu retorno em 1950 “nos braços do povo” e culminará com seu suicídio. Será lançado em 2014, exatos 60 anos depois da sua morte.

Cearense, Lira trabalhou em O Povo, onde, muito jovem, chegou a ser ombudsman. Ainda em Fortaleza, fez seu primeiro experimento biográfico narrando a vida de Rodolfo Teófilo, escritor e médico sanitarista, um equivalente cearense a Oswaldo Cruz. Em 2004, já em São Paulo, lançou a biografia de Castello Branco. A seguir vieram José de Alencar (2006) – que lhe rendeu um Jabuti –, Maysa (2007) e Padre Cícero (2009). Como se vê, Lira sempre escolhe para biografar personalidades fascinantes, complexas e contraditórias.

Getúlio Vargas talvez seja o brasileiro mais estudado. Sobre ele produziram-se livros, perfis biográficos, biografias, dissertações e teses. Lira leu tudo o que encontrou. E também buscou fontes primárias como jornais, documentos em arquivos e bibliotecas, folhetos, marchinhas, fotos, tudo. Estudos de primeira qualidade e muito material produzido por áulicos ou detratores. Também tirou da poeira inquéritos e processos.

Todo este garimpo resultou em várias descobertas. Dois assassinatos atribuídos a ele foram esclarecidos: Getúlio é inocente em ambos. Antes de Lira, outros pesquisadores já trataram destes casos. Mas o autor, nos dois casos, foi o primeiro a se debruçar e dissecar os inquéritos e processos. No primeiro, uma briga em Ouro Preto, onde estudava com seus irmãos mais velhos, resultou na morte do filho de um quatrocentão paulista. Nas centenas de páginas, lidas uma a uma, Lira encontrou uma descrição do assassino feita por uma testemunha-chave: usava bigode. Meninote, Getúlio naquela época ainda era imberbe. No outro, de uma índia no interior do Rio Grande, encontrar o inquérito não foi fácil. Não estava arquivado na pasta em que deveria estar. A persistência do repórter que não desiste fez com que terminasse encontrando-o. O assassino chamava-se Getúlio Dornelles de Vargas. Era um homônimo. Na certidão de nascimento do assassino, os nomes dos pais eram outros. Sem este esforço de busca, tais documentos mofariam nos arquivos sem que ninguém os tocasse.

Essa obsessão pelas minudências resulta que a narrativa de cada episódio de sua vida seja descrita num texto leve, fluente e de leitura agradável, que envolve, encanta e segura o leitor. Embora mergulhe fundo e se envolva profundamente com seu biografado, não se deixa contaminar pela paixão e não perde a isenção. A realidade do Rio Grande do Sul na virada do século XIX para o século XX e o Brasil da República Velha são bem apresentados como pano de fundo da narrativa. E o leitor já identificará no biografado atributos que se tornarão marcas do Getúlio maduro.

Trabalho de jornalista, a obra é dedicada ao grande público. Mas para pesquisadores, historiadores e outros interessados, todos os fatos narrados são referidos em notas ao fim do volume. Neste tomo, são exatas 1.773. Pela primeira vez, Getúlio Vargas contará com uma biografia exaustiva feita “com base numa pesquisa impressionante”, como anotou Boris Fausto na contracapa. Maria Celina D’Araujo fala em “imensidão de dados”. Os brasileiros precisam conhecer a vida deste homem cujo legado permanece e ainda gera tanta polêmica.

Victor Gentilli é jornalista, mestre e doutor pela ECA-USP e professor da Universidade Federal do Espírito Santo.

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