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Cromossomos variáveis

Número de cromossomos varia em linhagens de células-tronco

Perda e ganho de material genético desafiam o uso dessas células em terapia

Rafaela Sartore/LaNCE/UFRJ Perdas e ganhos: célula cerebral de camundongo com número original de cromossomos (40, no meio) e células aneuploides, com 39 (esquerda) e 41 (direita) cromossomosRafaela Sartore/LaNCE/UFRJ

Em um artigo publicado este mês na revista Frontiers in Cellular Neuroscience, o neurocientista Stevens Rehen e sua equipe no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) chamam a atenção para um fenômeno que atinge com frequência as células-tronco e que deve exigir cautela no uso dessas células tanto em pesquisas como em potenciais terapias. Esse fenômeno é a aneuploidia: a perda ou o ganho de cromossomos, os filamentos espiralados de DNA que abrigam os genes.

Rehen, a biomédica Rafaela Sartore e a bióloga Sylvie Devalle analisaram cerca de 160 estudos publicados nos últimos anos e observaram que a variação no número de cromossomos atinge diferentes linhagens de células-tronco cultivadas nos laboratórios ao redor do mundo. “Embora também ocorra em organismos vivos e saudáveis, a aneuploidia observada nas células em cultura não enfrenta a pressão seletiva de mecanismos que as eliminem”, comenta Rehen, coordenador do Laboratório Nacional de Células-tronco Embrionárias (LaNCE) da UFRJ, onde esse tipo de célula é usado para tentar construir modelos experimentais do que ocorre em doenças neuropsiquiátricas.

“Precisamos identificar o grau de aneuploidia tolerável, com o qual o organismo consiga lidar sem que surjam efeitos nocivos”, conta Rafaela, uma das pesquisadoras do LaNCE.

De modo geral, a aneuploidia é vista como indesejável porque pode levar ao desenvolvimento de doenças neurológicas e psiquiátricas e até mesmo à morte do feto. Observada em taxas elevadas nas culturas de células-tronco, ela pode tornar inviável o uso dessas células em potenciais terapias. Versáteis e capazes de originar diferentes tecidos do corpo, as células-tronco – em especial as embrionárias, extraídas de embriões nos primeiros dias de vida – são a esperança de novos tratamentos para doenças hoje incuráveis ou para as quais ainda não existe terapia satisfatória. Para que seu uso seja seguro, porém, acredita-se que é necessário que mantenham a quantidade original de material genético (nos seres humanos as células, com exceção dos óvulos e dos espermatozoides, têm 23 pares de cromossomos).

Essa estabilidade cromossômica, entretanto, é menos frequente do que se imaginava. “Desde que começamos a monitorar as células-tronco em cultura em nosso laboratório, verificamos que de 20% a 30% delas apresentam naturalmente alguma forma de aneuploidia”, conta Rafaela.

Depois que Rehen identificou a aneuploidia no cérebro de roedores e humanos saudáveis, respectivamente em 2001 e em 2005, ela já foi observada em outros tecidos do corpo. Aparentemente é uma falha na divisão celular comum em órgãos que passam por fases aceleradas de desenvolvimento, como o cérebro – seja o dos roedores, seja o humano. Estudando o desenvolvimento neuronal durante um estágio na Universidade da Califórnia em San Diego, nos Estados Unidos, Rehen observou que um terço das células do cérebro em formação tinha quantidade de DNA diferente da esperada. Também verificou que o organismo, à medida que amadurece, se encarrega de eliminar as células aneuploides, cujo índice que diminuía para cerca de 10% no cérebro adulto. Em estudo publicado em 2011, Rehen e Rafaela comprovaram que a aneuploidia surge durante a fase de especialização (diferenciação), em que as células-tronco progenitoras das células cerebrais se dividem para originar neurônios e células da glia.

Segundo Rehen, nas células-tronco embrionárias em cultura a forma mais comum de aneuploidia é o ganho de uma cópia extra dos cromossomos 12, 17 ou 20, em geral observado em células tumorais. Já nos tecidos saudáveis o que ocorre com mais frequência é a perda de cromossomos inteiros ou de parte deles. “Acreditamos que a exposição a ambientes estressantes, associada à predisposição genética, aumente a taxa de aneuploidia em doenças cerebrais”, comenta Rehen. Por essa razão, o potencial uso de células-tronco para transplantes no futuro exigirá a investigação da ocorrência de formas específicas de aneuploidia associadas a doenças neurológicas e psiquiátricas e a tumores. Em algumas formas de ataxia, doença neurodegenerativa que provoca a perda do controle muscular, parece haver um aumento generalizado do material genético das células cerebrais, enquanto no Alzheimer e na esquizofrenia esse aumento atinge cromossomos específicos, de acordo com o artigo na Frontiers in Cellular Neuroscience.

“É preciso ficar alerta para esse fenômeno quando se pensam no desenvolvimento de tratamentos e na elaboração de modelos experimentais baseados células-tronco”, afirma Rehen. “Queremos descobrir, por exemplo, se as células-tronco obtidas pela reprogramação de células retiradas da pele de pessoas com esquizofrenia originariam neurônios com as mesmas formas de aneuploidia encontradas nos cérebros dessas pessoas”, conta Rafaela.

 

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