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Antonio Prata

Ata 387

Aos três dias do mês de setembro de dois mil e seis, às vinte horas e trinta e dois minutos, na sala S-48, sede do Centro Acadêmico Dezoito Brumário, da Faculdade de Ciências Sociais, de acordo com o disposto no artigo 8º do estatuto do regimento interno do órgão supracitado, os membros se reuniram extraordinariamente com a seguinte pauta: decidir o destino das verbas angariadas no evento intitulado “Chopada dos Bichos”, no valor de mil e noventa e três reais e setenta e três centavos.

Compareceram o diretor-geral do C.A., Augusto de Oliveira (Cabeleira), o diretor administrativo Robson S. Torres (Rob Marley), o diretor de comunicação Felipe Cuglioni (Lipão) e a diretora financeira Olívia Ramos (Lilica). Marcos Azambuja (Bujones), diretor de programação, não apareceu para o início da reunião.

Havendo número regimental, o diretor-geral Cabeleira iniciou os trabalhos apresentando aos demais presentes a lista de possíveis investimentos para a verba arrecadada, elaborada na última reunião ordinária, no último dia trinta, a saber: 1) Uma mesa de pebolim para o C.A. 2) Um novo computador para o C.A. 3) Reforma do sofá do C.A. O diretor-geral Cabeleira propôs o voto direto para decidir-se a questão.

Neste ponto, o diretor administrativo Rob Marley pediu a palavra para um aparte. Aparte aceito, Rob Marley objetou que, não estando presente à reunião do dia trinta do mês último, quando foi elaborada a lista, não poderia reconhecê-la como legítima, sendo o pebolim, o computador e a reforma do sofá alternativas autoritariamente impostas de cima para baixo, reproduzindo o sistema opressor que eles mesmos diziam combater, qual seja: o oligopólio neoliberal escamoteado como democracia. A diretora financeira Lilica lembrou o diretor administrativo Rob Marley do regulamento seis, inciso quatro, do estatuto do Centro Acadêmico, que estabelecia que, mesmo na ausência de algum dos membros, havendo quórum de 75%, as votações eram válidas. Lembrou-o ainda que, quando da votação, o diretor administrativo havia sido visto saindo do almoxarifado com uma primeiranista de psicologia, atitude que, embora não condenada pelo estatuto do Centro Acadêmico, merecia no mínimo uma admoestação verbal. O diretor administrativo Rob Marley argumentou que não tinha vergonha de seus atos e que bastava ler Reich ou Marcuse para saber que a revolução decorrerá de ações como as por ele praticadas no almoxarifado, não da burocracia cinzenta das altas esferas do poder, sendo aplaudido entusiasticamente pelo diretor de comunicação Lipão. A diretora financeira Lilica ameaçou sair da sala, mas foi dissuadida pelo diretor-geral Cabeleira, que insistiu na importância de sua presença, dada a natureza do tema serem exatamente as finanças.

Acalmados os ânimos, foi pedido ao diretor de comunicação Lipão que preparasse as cédulas. Neste ínterim, o diretor administrativo Rob Marley pediu a palavra e levantou a questão do efeito estufa, do aquecimento global e do degelo das calotas, propondo que, a longo prazo, o C.A. Dezoito Brumário se engajasse mais na questão ecológica. Sugeriu, porém, a curtíssimo prazo “tendo em vista a boa hidratação de todos os presentes” que se comprassem algumas cervejas. A proposta foi aceita por unanimidade. A diretora financeira Lilica disse que não iria ser ela a comprar as cervejas, posto que nas últimas duas reuniões havia sido encarregada de tal função. Sublinhou ainda que poderia haver sob tal insistência um fundo de machismo dos membros do C.A. O diretor-geral Cabeleira ofereceu-se para buscar as cervejas, mas lembrou-a de que de machismo ele não poderia ser acusado, sendo a prova cabal de sua idoneidade o tema de seu trabalho de iniciação científica: Margaret Mead e a questão do masculino e do feminino nas sociedades primitivas. A diretora financeira Lilica declarou nada saber a respeito da iniciação científica do colega e pediu mais informações, mas o diretor-geral Cabeleira disse que preferia ater-se à pauta do dia. Antes de sair, percebendo certa animosidade no recinto, sugeriu que o diretor administrativo Rob Marley preparasse um cigarro de maconha. Ficou acertado que o dinheiro para as cervejas seria abatido do total arrecadado, na qualidade de “custos adicionais”, e que o diretor administrativo Rob Marley seria ressarcido do fumo ali consumido.

Tendo o diretor-geral Cabeleira voltado com as cervejas e vendo que as cédulas estavam prontas, decidiu abrir a votação. O diretor de comunicação Lipão observou que o cigarro de maconha também estava pronto e que colocar o trabalho antes do lazer era uma imposição burguesa às classes trabalhadoras, citando um ou outro trecho de Foucault e propondo, destarte, que fumassem o baseado. Foi bastante aplaudido.

Findos os trabalhos canabino-revolucionários, adentrou o recinto o diretor de programação Bujones, tocando ao violão a canção Viva a sociedade alternativa! (de autoria do músico baiano Raul Seixas), acompanhado por três intercambistas bolivianos, munidos de flautas de bambu. Após a execução da música, Bujones cumprimentou a todos os presentes e convocou-os para a cervejada do C.A. de psicologia. O diretor administrativo Rob Marley defendeu a ideia com eloquência e, citando Maquiavel, argumentou que a união dos C.As. era fundamental e que a separação entre eles era justamente o projeto de dominação da reitoria. A diretora financeira Lilica afirmou saber exatamente o tipo de união que ele buscava no C.A. de psicologia. O diretor de programação Bujones e os três bolivianos deram início à execução da canção Volver a los 17, de Violeta Parra. Projetando a voz, o diretor-geral Cabeleira propôs que se encerrassem os trabalhos. A diretora financeira Lilica fez o uso da palavra para protestar contra o que chamou de furdunço engajado e deixou claro que se o C.A. Dezoito Brumário continuasse com tamanha propensão para a esbórnia, ela sairia da chapa. O diretor administrativo Rob Marley aproveitou a deixa para encorajar a colega a assim proceder, pois suas posturas pequeno-burguesas não condiziam com a postura revolucionária do grupo. Dada a agressividade do diretor administrativo, a diretora financeira decidiu responder à altura e, arrancando a flauta de bambu da mão de um dos intercambistas bolivianos, deu com a mesma na cabeça do diretor de administração, que, ao cair no chão, bateu com a cabeça na máquina de escrever e derramou no carpete considerável quantidade de sangue. Diante da conjuntura adversa, o diretor-geral Cabeleira achou por bem encerrar os trabalhos e dirigirem-se todos à Santa Casa de Misericórdia – sem votação.

Tendo todos os membros deixado às pressas o recinto, às vinte e uma horas e quarenta e nove minutos da data mencionada anteriormente, encerrou-se, sem conclusão sobre a pauta, na sala S-48, a reunião de número 387 do Centro Acadêmico Dezoito Brumário.

Sem mais, Buzunfa (estagiário).

Antonio Prata é escritor e colabora como cronista em diversos veículos. É autor dos livros de contos Douglas e outras histórias, As pernas da tia Corália e O inferno atrás da pia, além da reunião de contos Meio intelectual, meio de esquerda. Foi escolhido pela revista espanhola Granta como um dos 20 melhores autores brasileiros com menos de 40 anos.

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