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Rodrigo Lacerda

Polinização

Ele já chegou ansioso, transportado até ali pela excitação, com o barulho de suas asas ecoando pela floresta. Era abril, início da primavera. A abelha, cujos feromônios o zangão deve ter rastreado a quilômetros de distância, o aguardava rente à folhagem rasteira. Ele foi se aproximando por trás, vendo crescer diante de si o dorso arredondado, protuberante, coberto de cerdas macias, no qual o azul do céu parecia refletido. As asas da fêmea, em descanso momentâneo, eram como um véu sobre seu corpo colorido. Quando o zangão finalmente pousou sobre ela, a abelha, submissa, aceitou sem resistência os movimentos abdominais vigorosos e as estocadas do macho enlouquecido de desejo.

Levou algum tempo até ele perceber que algo estava errado. Aquela fêmea era… uma planta!?!

Ao se desfazer o encanto, só lhe restava sair voando à procura de outra parceira. Mesmo nessa hora, o zangão não percebeu os dois pequenos cilindros amarelos grudados em suas costas.

Eu larguei o botão do disparador e abri o sorriso largo de quem conseguiu todas as imagens que precisava. Aquela era nossa primeira incursão nas florestas da Sardenha. Ainda que por lá as chamadas orquídeas prostitutas cresçam como mato, foi muita sorte flagrarmos em tão pouco tempo sua pseudocópula com o zangão. A bióloga responsável pelo trabalho até duvidou:

“Você tem certeza que pegou tudo?”

Tirei a máquina do tripé e mostrei para ela. Cada etapa do processo estava lá: a flor da Ophrys, imitando direitinho o formato e as cores de uma abelha de costas, o pouso do zangão, o logro sexual e, por fim, o momento em que as polínias, as duas bolsas cheias de pólen, grudaram no dorso do pobre macho ludibriado.

Salomé balançou a cabeça, satisfeita. Nos próximos dois meses, ela ia precisar que eu fosse bom no meu trabalho. Começamos a recolher nosso equipamento.

“A maioria das flores recebe várias espécies de insetos durante a polinização”, Salomé falou. “Mas orquídeas como a Ophrys só atraem um tipo de polinizador. Você acha justo que ela tenha o apelido de orquídea prostituta?”

“A bióloga aqui é você, eu só tiro as fotos”, respondi, achando que iria agradar.

Ela me olhou meio torto, e disse:

“Para mim, é machismo. A Ophrys é muito menos promíscua que as outras.”

“Pensando bem, eu concordo. O apelido é injusto. E sobretudo por um detalhe que você não mencionou.”

“Qual?”

“A realização efetiva da cópula é a única certeza com as prostitutas.”

A orquídea Cryptostylis atrai o polinizador emitindo um cheiro igual ao feromônio de um tipo de vespa. O zangão dessa espécie, porém, cai no logro até o fim. Ele de fato ejacula na flor, desperdiçando seu esperma. Chegava a ser cruel a forma como a Cryptostylis usava o agente polinizador sem dar coisa nenhuma em troca. Já as flores da Angraecum produzem néctar em tubos longuíssimos, de modo a que somente possam alcançá-lo certas mariposas com línguas tão longas quanto. Essas pelo menos têm a recompensa da comida. As orquídeas do gênero Dracula, por sua vez, encantam mosquitos produzindo odores de fungo, carne putrefata, urina de gato e fezes. Outras orquídeas ainda imitam zangões em voo, incitando o polinizador a um combate imaginário.

“Dá um pouco de pena das orquídeas que não usam polinizadores para reproduzir, não dá?”

“Por quê, Salomé?”

“São como mulheres destituídas de qualquer poder de atração.”

“É… ou então incapazes de se entregar.”

Ela me olhou, pensando em uma resposta.

“De um jeito ou de outro, são obrigadas pela natureza a se bastar.”

Estávamos já há um mês viajando juntos quando ouvi isso. Passaríamos mais quatro semanas fora do Brasil, pagos para mapear as estratégias de polinização das orquídeas em seus habitats naturais. Salomé era extremamente reservada, mas interessante, e com ela eu trabalhava em harmonia. Tínhamos paciência nas buscas, gostávamos do isolamento. Na ilha Celebes, por exemplo, passamos dias superando pacificamente a decepção e o desconforto, até encontrarmos a mais perturbadora das orquídeas, uma Bulbophyllum echinolabium.

Quando a vi pela primeira vez, julguei estar diante de um mandarim do reino vegetal; um daqueles velhinhos chineses com duas longas barbichas caindo-lhe do queixo. No meio da flor estava seu rosto, pequeno e rosado. Mas Salomé soube me fazer enxergar as coisas de outro modo.

Primeiro recomendou que eu fechasse os olhos e percebesse o cheiro forte, indefinível, com o qual a flor convocava os polinizadores. Subitamente, sem maior esforço, ele ficou muito nítido, mesmo para mim.

“Agora preste atenção no labelo que sai da flor, a pequena haste cor de pele, ou vermelho-claro, entre as duas pétalas inferiores. Não parece uma cartilagem?”

Sim, parecia, e Salomé soube exatamente quando a imagem se formou dentro de mim.

“O labelo fica preso apenas por um pontinho. A menor brisa é suficiente para acariciá-lo, fazendo-o balançar. Viu?”

Vi. E você, se fosse um inseto vendo aquilo, ficaria em ponto de bala, garanto. Era impossível não querer chegar mais perto, tocar. Mas, na estratégia reprodutiva da echinolabium, ainda faltava o elemento realmente impróprio para menores.

“Repare na coluna, o centro da flor, como ela ganha um vermelho forte, cor de morango maduro.”

Eu reparei. Ela se abria em dois lábios intimamente frisados, de bordas quase roxas de tão intensas, desenhando-se ao redor de um ponto pequeno, mais escuro. Qualquer polinizador que se preze saberia exatamente onde penetrar.

Algumas orquídeas, em troca da polinização, oferecem substâncias perfumadas. As abelhas, machos e fêmeas, usam a cera da flor para produzir os feromônios com que atraem seus parceiros. Assim como nós, humanos, também recorremos ao perfume das flores em nosso processo de sedução.

Por isso estávamos numa floresta no Panamá, no sexto dia da última expedição, há 52 dias longe de casa. Eu, na barraca, deitado, matando as saudades da minha mulher. Salomé, examinando amostras de plantas. O guia que havíamos contratado, um panamenho com cara de inca, fumando um cigarro mais fedorento que uma orquídea Dracula no cio.

Mais cedo naquele dia, Salomé havia dito uma frase estranha de se ouvir de uma mulher, estando sozinho com ela no meio da floresta:

“Alimentação e reprodução, não necessariamente nessa ordem, são as duas únicas coisas nas quais eu penso o tempo todo, todos os dias da minha vida.”

Na manhã seguinte, finalmente encontramos o espécime que faltava. As pétalas amarelo-canário da Coryanthes panamenha exalavam um cheiro forte de especiarias adocicadas, atraindo da mata zangões do tipo Euglossina. Pareciam feitas de um material borrachoso, brilhante e envernizado, que se redobrava sobre si mesmo. Em suas pregas escorregadias, os zangões competiam por espaço e pelo direito de raspar maior quantidade das fragrâncias na superfície cerosa da flor. Tais aromas, combinados a outros ingredientes, iriam ser espalhados pelos machos em seus próprios corpos, numa estratégia infalível para conquistar as fêmeas da espécie.

Mas havia um preço a pagar. O labelo da Coryanthes, em forma de balde e cheio do líquido viscoso presente nas pétalas, estava pronto para receber qualquer zangão que, menos prudente, viesse a escorregar nas suas paredes. Logo aconteceu. Ao cair na piscina melada, um dos insetos teve as asas temporariamente inutilizadas. Para não morrer afogado, agora precisava escalar de volta, passando por uma passagem estreita, até a parte posterior da Coryanthes. Atordoado e ensopado, ele se espremeu nesse túnel, passando embaixo de uma estrutura que lhe pregou nas costas um par de polínias.

Nove meses depois de voltarmos do Panamá, Salomé teve um filho com cara de inca.

Rodrigo Lacerda é escritor, trêz vezes vencedor do Prêmio Jabuti, tendo publicado, entre outros, os romances O fazedor de velhos e Vista do Rio. Ganhou o prêmio de melhor livro de 2010 da Academia Brasileira de Letras com o romance Outra vida.

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