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Medicina

Da bancada ao paciente

Protásio Lemos da Luz, cardiologista do InCor, foi um dos pioneiros da transferência de conhecimento da área básica para a prática clínica

Léo RamosNascido em 1940, em um sítio no interior do município gaúcho de Vacaria, Protásio Lemos da Luz veio ao mundo pelas mãos de uma parteira. Foi o segundo dos seis filhos de Suely Lemos da Luz e Salvador Nery da Luz. A mãe criou-o praticamente sozinha. O pai morreu quando o menino tinha 4 anos. A infância foi em meio à natureza, no convívio diário com gente do campo, animais e plantações, ao sabor do passar das estações, inclusive geadas e nevascas, como é comum naquelas latitudes do Rio Grande do Sul. “Fiz de tudo no sítio”, relembra o cardiologista Protásio, ex-professor titular de cardiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e hoje pesquisador sênior do Instituto do Coração (InCor). Com recortes de jornal, a mãe, que reforçava o orçamento familiar costurando para fora, ensinou-o a ler – o sítio ficava longe das escolas da área urbana. Dona Suely precisava mandar os filhos para a casa de um parente na cidade quando chegasse a hora de eles receberem uma educação formal. Foi o que se passou com Protásio, que frequentou dois ginásios, um no município de Lagoa Vermelha e outro em Vacaria.

O endereço de outro parente, o avô Teóphilo, em Curitiba, foi sua próxima residência. Ele se mudou para a capital do Paraná, na segunda metade de década de 1950, para cursar o científico (hoje ensino médio), direcionado para quem queria seguir carreira nas áreas de exatas ou biológicas. Protásio havia pensado em algumas profissões que poderia exercer, como padre, médico, fazendeiro, professor, militar, engenheiro ou advogado. “Por diferentes motivos, fui descartando uma a uma, até sobrar a de médico”, diz. Chegou a cogitar a vida de homem do campo. Gostava da natureza, de andar a cavalo e tinha boas lembranças da infância em Vacaria. Mas também se recordava de que a lida no sítio era realmente pesada, de sol a sol, e desgastante do ponto de vista físico.

Formatura em medicina na UFPR: orador da turma de 1965

Arquivo Pessoal Formatura em medicina na UFPR: orador da turma de 1965Arquivo Pessoal

Durante o científico, tomou gosto por três disciplinas: química, biologia e português. Fascinava-o pensar como o organismo humano funcionava. Fez um teste vocacional e o resultado também apontou a área biológica como a mais indicada para sua atuação profissional. Antes de decidir o curso no qual tentaria uma vaga no vestibular, Protásio teve a chance de observar de perto a atuação de médicos. Durante o período em que trabalhou em uma farmácia como atendente de balcão, além de lavar vidros, viu como as famílias depositavam toda sua esperança de curar um doente nas mãos dos médicos. A medicina lhe parecia a ocupação ideal: reunia o gosto por estudar as doenças e o organismo humano com a real possibilidade de ajudar as pessoas.

Protásio cultivava outra paixão, que, com o tempo, acabaria sendo abandonada: a política. Era de esquerda, tinha uma queda por história e política e acompanhava a trajetória de líderes de distintos matizes ideológicos, como John F. Kennedy, Winston Churchill, Fidel Castro, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda. Bom de oratória, com 18 para 19 anos, Protásio tornou-se presidente da União Paranaense dos Estudantes Secundaristas. Como dirigente estudantil, frequentou muitos gabinetes oficiais e teve contato com o então governador do Paraná, Moisés Lupion. “Fiz uma gestão muito boa, mas encurtei meu mandato para fazer o vestibular”, conta Protásio. “Vi também que havia muita vaidade e fingimento nessa atividade.”

Como presidente da União Paranaense dos Estudantes Secundaristas, Protásio visitou em 1959 o então governador do estado, Moisés Lupion, durante congresso estudantil

Arquivo Pessoal Como presidente da União Paranaense dos Estudantes Secundaristas, Protásio visitou em 1959 o então governador do estado, Moisés Lupion, durante congresso estudantilArquivo Pessoal

Em 1960, entrou na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Já no primeiro ano do curso ofereceu-se para trabalhar com o professor Giocondo Villanova Artigas, na parte de cirurgia. A oferta, considerada muito precoce, foi inicialmente
recusada, mas logo depois aceita. Apesar do desencanto com o ambiente que circundava o movimento estudantil, Protásio ainda nutria certo gosto pela atividade política. Artigas deu-lhe um ultimato – “ou faz política ou faz medicina” – e o que ainda restava do dirigente estudantil em Protásio cedeu lugar ao futuro médico. Seu interesse inicial foi pela cirurgia, mas logo mudou seu foco para a clínica médica, sob supervisão do professor Lysandro dos Santos Lima, grande influência em sua trajetória profissional. “Ele me mostrou os caminhos a seguir e revelou a essência do cuidado médico”, afirma. Formou-se em 1965 e terminou a residência em clínica médica dois anos mais tarde.

Nos anos de faculdade, Protásio resolvera investir em um curso de inglês. Não era uma preocupação muito comum para médicos em formação naquele tempo, mas o jovem universitário achava que dominar esse idioma lhe seria útil na profissão. Em pouco tempo, a aposta se mostraria certeira. Terminada a residência na UFPR, resolveu buscar uma especialização. Depois de eliminar a maior parte das especialidades, ficou entre nefrologia e cardiologia. Como julgava que os avanços científicos pareciam ocorrer em um ritmo mais acelerado na segunda área, decidiu dedicar-se ao estudo dos problemas do coração. Para perseguir esse objetivo, tinha de se mudar para São Paulo, onde a cardiologia era mais avançada graças ao grupo de professores e pesquisadores que se aglutinava na FM-USP. Em 1968, conseguiu vaga no disputado curso de especialização em cardiologia de Luiz Venere Décourt, professor titular de Clínica Médica da faculdade, que seria um dos idealizadores do InCor.

com o cardiologista William Ganz em Chicago, em 2003, uma das influências na sua formação profissional.

Arquivo Pessoal Com o cardiologista William Ganz em Chicago, em 2003, uma das influências na sua formação profissionalArquivo Pessoal

Pouco depois de ter concluído o curso em 1969, surgiu uma oportunidade que iria moldar o perfil da carreira de Protásio. O InCor, ainda em fase de planejamento, queria enviar aos Estados Unidos um cardiologista para aprender a fazer pesquisa experimental, com modelos animais, além de estudos clínicos, especialmente com pacientes sob cuidados intensivos. A ideia era, em poucos anos, ter um profissional com esse perfil nos quadros do InCor, um médico pesquisador que pudesse implantar um setor de pesquisa experimental quando fosse criado um instituto dedicado às doenças do coração. “Era o único da minha turma que falava bem inglês e tinha todas as credenciais para me candidatar ao estágio nos Estados Unidos”, conta. Com bolsa da FAPESP, passou dois anos (1971-1973) no Hollywood Presbiterian Medical Center, ligado à Universidade do Sul da Califórnia (USC), em Los Angeles. Ficou no setor de medicina intensiva, na unidade de choque chefiada pelo professor Max Harry Weil, uma autoridade no trato de pacientes em estado crítico. Voltou por um breve período a São Paulo para defender a tese de doutorado na FM-USP e retornou novamente para uma temporada de mais três anos nos Estados Unidos, dessa vez como pesquisador do setor de cardiologia do Cedars-Sinai Medical Center, da Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla).

Nesse hospital, trabalhou com dois médicos-pesquisadores que se tornaram referência para a cardiologia internacional, William Ganz e Harold Jeremy Charles Swan. A dupla entrou para a história da cardiologia por ter inventado, na primeira metade dos anos 1970, o chamado cateter de Swan-Ganz, um dispositivo flexível instalado, através da artéria pulmonar, em pacientes que sofreram infarto do miocárdio para monitorar as funções cardíacas e avaliar os efeitos da administração de drogas. “Naquela época não se sabia por quanto tempo depois do infarto ainda era possível tratar o paciente”, lembra Protásio. Havia quem acreditasse que 20 minutos depois de o músculo cardíaco ter sofrido uma parada não era mais possível reverter o quadro. Durante os três anos no Cedars-Sinai, o pesquisador brasileiro se orgulha de ter participado, decisivamente, de estudos que ajudaram a estabelecer as bases do tratamento moderno do infarto do miocárdio, inclusive dos trabalhos que mostraram a viabilidade de se intervir sobre o músculo cardíaco em um prazo máximo de até três horas após a sua parada.

Abaixo, Protásio (esq.) em torneio de laço beneficente realizado no município gaúcho de Esmeralda, no início dos anos 1980: gosto pela vida do campo

Arquivo Pessoal Protásio (esq.) em torneio de laço beneficente realizado no município gaúcho de Esmeralda, no início dos anos 1980: gosto pela vida do campoArquivo Pessoal

Em julho de 1976, estava de volta ao Brasil. Tornou-se professor livre-docente da Faculdade de Medicina e começou a instalação de um laboratório de pesquisa experimental com modelos animais no InCor, cujo prédio havia sido terminado no ano anterior. Em São Paulo, direcionou seus estudos para o infarto do miocárdio e a compreensão da aterosclerose, a formação de placas de gordura nos vasos sanguíneos, um processo que pode levar ao infarto. Em seus trabalhos científicos com animais e pacientes, privilegiou a busca por métodos não invasivos de detecção da aterosclerose. Mais recentemente, passou também a se dedicar a estudos sobre o consumo moderado de vinho tinto como forma de minimizar a formação de placas de gordura nas artérias, tanto em animais como no homem. Essas últimas pesquisas tiveram considerável repercussão no meio científico e entre os leigos. Concomitantemente aos trabalhos científicos, nunca deixou de exercer a medicina e cuidar de seus pacientes. “Protásio fez o que chamamos hoje de pesquisa translacional, abrangendo desde a parte de ciência básica até a prática clínica”, diz o cardiologista Eduardo Moacyr Krieger, vice-presidente da FAPESP e ex-diretor da Unidade de Hipertensão do InCor. “Ele sempre teve essa dupla atuação, de pesquisador e clínico, e procurou manter uma relação humana com os pacientes”, afirma a cirurgiã Angelita Habr-Gama, amiga e professora aposentada da FM-USP.

Desde 2010, Protásio está formalmente aposentado da FM-USP, onde atingiu o topo da carreira universitária como professor titular. Mas continua na ativa, como médico e pesquisador. De forma voluntária comparece diariamente ao InCor para tocar seus estudos. As tardes são dedicadas ao seu consultório particular, onde realizou mais de 25 mil atendimentos ao longo de quase quatro décadas. Do currículo de Protásio, que foi presidente da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo e da Sociedade Brasileira de Investigação Clínica, constam mais de 420 trabalhos científicos, dos quais 150 artigos em revistas internacionais e mais de 50 capítulos escritos para livros técnicos, fora os trabalhos em congressos e apresentações de palestras. Em 2004, recebeu o Prêmio Jabuti pelo livro Endotélio e doenças cardiovasculares, escrito com Francisco R. M. Laurindo e Antonio C. P. Chagas. Recentemente passou a escrever livros menos técnicos, orientados a um público mais amplo, como Nem só de ciência se faz a cura, de 2004, e As novas faces da medicina, de 2014. Para Protásio, a maior contribuição de sua carreira à cardiologia não foram os trabalhos científicos, embora esses tenham sido também importantes. “Acho que a formação de pessoal, de outros médicos, é o meu maior legado”, afirma. “Sua determinação científica e honestidade ímpar sempre foram uma referência”, diz o cardiologista Antonio C. P. Chagas, que foi orientado por Protásio no doutorado, faz parte de seu grupo de pesquisa e hoje é professor livre-docente da FM-USP e titular da Faculdade de Medicina do ABC.

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