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BIOTECNOLOGIA 

Teias de laboratório

Cientistas brasileiros produzem fibras sintéticas que mimetizam os fios de aranhas

Teia de aranha: resistência e elasticidade transferidas para um biopolímero feito de proteínas

Léo ramosTeia de aranha: resistência e elasticidade transferidas para um biopolímero feito de proteínasLéo ramos

Nas telas de cinema e nas histórias em quadrinhos, o super-herói se desloca pela metrópole pendurado em resistentes fios de seda, que também são usados para imobilizar os vilões que ameaçam a cidade. No que depender de um grupo de pesquisadores brasileiros, liderado por Elíbio Rech, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, de Brasília, dentro de alguns anos a ficção poderá, com certas adaptações, tornar-se realidade. Rech está à frente de uma equipe cujo objetivo é fabricar fibras sintéticas inspiradas nas teias de aranha da biodiversidade brasileira. Esse biopolímero artificial, cujo processo de fabricação em escala laboratorial já é plenamente dominado, poderá ser usado como matéria-prima para a fabricação de vasta quantidade de produtos, entre eles fios biodegradáveis para sutura cirúrgica, coletes à prova de balas mais leves do que os atuais, para-choques de automóveis flexíveis e até bagageiros e outros componentes plásticos de aviões. Com um pouco de imaginação, os fios sintéticos poderão inclusive dar origem a cordas ultrarresistentes capazes de ter emprego similar ao dado pelo Homem-Aranha, o super-herói da Marvel Comics.

“Esse novo biomaterial, fabricado com auxílio de ferramentas de biotecnologia e engenharia genética, poderá, em tese, ser utilizado para uma infinidade de aplicações que demandam flexibilidade, resistência e biodegradabilidade em um único material”, afirma Elíbio Rech. “Nós já dominamos a tecnologia da produção de fios sintéticos de teias de aranha em laboratório. Nosso desafio agora é definir uma forma econômica, rápida e segura para sua produção em larga escala.” Iniciadas há nove anos, as pesquisas conduzidas por Rech contam com a participação de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto Butantan e da Universidade de Brasília (UnB), além dos cientistas Randy Lewis, da Universidade de Utah, e David Kaplan, da Universidade Tufts, ambas nos Estados Unidos.

Infográficos: Yuri Vasconcellos e Ana Paula Campos / Ilustração: Alexandre AffonsoO interesse em produzir fibras que mimetizam a seda de aranha se dá porque esse material agrega propriedades únicas. Os fios tecidos pelas aranhas são, ao mesmo tempo, resistentes e elásticos – o aço, em comparação, é altamente resistente, mas não é flexível. Feitos de proteínas, são biodegradáveis. Ao fazer a análise molecular desse material, os cientistas brasileiros descobriram que as aranhas da biodiversidade brasileira produzem teias extremamente robustas e flexíveis. “Um cabo da espessura de uma caneta tecido com fios de aranha, por exemplo, poderia ser usado para deslocar um avião grande, tipo Boeing, sem se romper”, conta o pesquisador da Embrapa. “Sabemos que a seda das aranhas tem características de flexibilidade e resistência superiores às de qualquer material existente, inclusive o polímero kevlar, usado para fabricação de coletes à prova de balas”, diz Rech, que é autor de diversos artigos sobre o assunto, o mais recente publicado em dezembro de 2013 na Nature Communications, revista científica do grupo Nature.

O estudo publicado revela a complexa organização em escala nanométrica das proteínas contidas nas teias de aranha encontradas no Brasil. É essa organização estrutural que lhes confere resistência e elasticidade. No artigo, escrito em coautoria com o biólogo Luciano Silva, também da Embrapa, é revelada pela primeira vez a nanoestrutura desses fios. “Com auxílio da microscopia de força atômica em alta resolução, os detalhes de cada fibra foram ampliados em até 1 bilhão de vezes, o que nos permitiu diferenciar, por exemplo, as fibras mais elásticas das mais resistentes. O estudo permitiu melhorar e acelerar nosso domínio da produção de fibras sintéticas inspiradas nas teias de aranha”, explica Rech.

Análises moleculares de teias de aranha da biodiversidade brasileira vão contribuir para a produção do biopolímero

Léo RamosAnálises moleculares de teias de aranha da biodiversidade brasileira vão contribuir para a produção do biopolímeroLéo Ramos

Biofábricas programadas
O processo de criação das fibras artificiais envolve o domínio de complexas técnicas de engenharia genética. A primeira etapa para fabricação do biopolímero em laboratório foi a identificação e o isolamento dos genes das glândulas produtoras de seda de cinco espécies de aranha (Nephila clavipes, Argiope aurantia, Nephylengys cruentata, Parawixia bistriata e Avicularia juruensis) de três diferentes biomas brasileiros: mata atlântica, Amazônia e cerrado. Em seguida, os cientistas realizaram análises moleculares, bioquímicas, biofísicas e mecânicas para estudar esses genes e compreender suas funções. A partir dos resultados dessas análises eles construíram sequências sintéticas de DNA para produção de fios com resistência e flexibilidade. Posteriormente, os genes modificados com as novas sequências de DNA foram clonados e introduzidos no genoma de bactérias I, programadas para atuar como biofábricas. Com isso, as bactérias transgênicas E. coli passaram a sintetizar em larga escala as proteínas recombinantes que formam os fios das aranhas, como se fossem fábricas naturais da molécula. O passo seguinte consistiu na extração das proteínas das bactérias. Para isso, a massa de microrganismos foi solubilizada (diluída em meio líquido) e purificada numa coluna de extração, onde ocorreu a separação das proteínas do restante do material.

O desafio final foi transformar as proteínas na fibra em si. Nas aranhas, esse processo é feito por um órgão específico chamado espirineta. É ele que organiza as proteínas na seda que será usada pela aranha para tecer as suas teias. “O que fizemos foi simular esse órgão. Com auxílio de uma seringa especial, que imita a espirineta, produzimos os fios em laboratório a partir das proteínas extraídas das bactérias”, diz o pesquisador. Esse processo foi detalhado em artigo na Nature Protocols, também do grupo Nature, em 2009. O texto foi assinado por Rech, Daniela Bittencourt, da Embrapa, e outros três pesquisadores da Universidade de Wyoming, dos Estados Unidos.

Custo elevado
Segundo Rech, além de resultar em aplicações para vários setores da economia, o fato de os estudos serem baseados em aranhas brasileiras tem outra vantagem: agrega valor à biodiversidade nacional. “A sustentabilidade é um aspecto importante do nosso trabalho. Estudamos a biodiversidade brasileira, empregando a tecnologia de DNA recombinante, como modelo de opção viável para a geração de ‘ativos’ e agregação de valor”, diz ele. “O uso de biologia sintética e engenharia metabólica abre a possibilidade de realizarmos a engenharia de organismos, entre eles bactérias, como reatores para a produção das proteínas associadas à fabricação de teias de aranha em larga escala e a um custo economicamente viável.” Esse é o maior desafio dos cientistas para dar uso comercial às fibras sintéticas e, com elas, fabricar uma grande variedade de produtos.

Infográficos: Yuri Vasconcellos e Ana Paula Campos / Ilustração: Alexandre AffonsoA principal alternativa é descobrir uma “fábrica natural” que sintetize em larga escala as proteínas que dão origem ao fio. A técnica que emprega bactérias tem um problema: o elevado custo do processo. Por isso, Rech está testando a fabricação da proteína em sementes de soja e o grupo de Randy Lewis, da University of Utah, faz o mesmo com leite de cabra. Tanto em um como em outro sistema, a molécula seria extraída ao final do processo e transformada na fibra. “Nossas pesquisas estão em andamento e ainda não é possível estimar quanto tempo será necessário para que o material esteja disponível no mercado”, diz ele.

Pesquisas com a mesma finalidade também são conduzidas em outros países. O exército norte-americano, por exemplo, adquiriu há alguns anos um projeto criado por laboratórios canadenses para a fabricação de fios sintéticos de aranha e busca uma forma de escalonar sua produção. O cientista Randy Lewis, parceiro de Rech, está envolvido nessa iniciativa. “Esse projeto vai indo muito bem”, diz o pesquisador da Embrapa. “Mas, até onde sei, nenhum grupo de pesquisa do mundo conseguiu até o momento chegar a uma solução de baixo custo. É isso que estamos perseguindo.”

Artigos científicos
SILVA, L.P. e RECH, E.L. Unravelling the biodiversity of nanoscale signatures of spider silk fibres. Nature Communications. 18 dez. 2013.
TEULÉ, F. et al. A protocol for the production of recombinant spider silk-like proteins for artificial fiber spinning. Nature Protocols. v. 4, n. 3, p. 341-55. 2009.

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