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Victor Heringer

Descender

Descenderluana geigerI
Com quantos pauzinhos se faz uma suástica? Seis: uma cruz e quatro perninhas nas pontas. Mas as crianças não sabem desenhar direito, e é difícil decorar para quais lados ficam as perninhas. Os desenhistas de suásticas da minha escola sempre se confundiam.

As carteiras da minha sala eram cheias desses rabiscos – a lápis, caneta, hidrocor. Na minha turma, as suásticas apareceram bem antes dos desenhos pornográficos, o nazismo foi a primeira sedução proibida. Quando ninguém sabia ainda quem tinha pipi e quem tinha perereca, todos já sabíamos que aquele símbolo era do mal.

Abri um exemplar de Mein Kampf antes de abrir uma Playboy. Um amiguinho levou para o colégio. Lemos numa rodinha secreta, mas não entendemos nada. Estava em alemão.

II
Meu nome é Vítor Heringer, uns dizem “réringuer”, outros “erínge”. Nasci na cidade do Rio de Janeiro em 1979. Sou branco, do branco que atrai mendigos, branco da linha dos alemães que aportaram aqui em 1824 e subiram a serra em direção a Nova Friburgo, para tentar cultivar a terra ruim que os suíços não quiseram.

A bordo do navio Argus, vieram dois Heringer: Felipe (Phil, Phillip, segundo os registros), alfaiate, e Jacó (Jacob, Jacques), ourives, ambos de Oldenburg e provavelmente irmãos. Pesquisei, mas não consegui descobrir qual dos dois é meu antepassado direto. Se pudesse escolher, seria tataraneto de Jacó, que chegou ao país com mulher e cinco filhos (Felipe trouxe a esposa), só pagou metade da passagem (Felipe pagou a inteira) e ainda liderou uma pequena rebelião contra o imperador, que o mandou para um segundo exílio no subúrbio carioca.

Minha avó dizia que somos descendentes de judeus asquenazitas, mas nunca conversei direito com ela. Acho que ninguém nunca o fez. Por isso foi envelhecendo com aquela cara de grito de Munch que tem. O pânico da espécie é esse mesmo: morrer sem ter tido uma conversa sequer.

III
Dei a impressão de que vovó estava morta. Não está. Viaja quietinha no banco do carona, toda maquiada, laquê, a boca naquele ô mudo de pavor, lábios pintadinhos de vermelho. O carro na avenida Nossa Senhora de Copacabana. Eu no banco de trás. Vamos jantar no Velho Cosme, um restaurante novo no bairro. Mamãe dirige:

“Os alemães, eles são predispostos a odiar os outros, será?”, ela pergunta sem querer dizer “os alemães, nós”. Está falando dos campos. De vez em quando falamos dos campos, não sei direito por quê. É como falar de um parente distante, será que morreu?, será que seus filhos morreram?, será que estão preparados para os efeitos catastróficos das mudanças climáticas?, onde é que eles moram mesmo? Mais adiante:

“Por que eles não ficaram lá? Nós poderíamos ter nascido na Alemanha. Imagina só”.

Vó: Eram pobres. Agricultores.

Eu: A gente nem fala alemão. Só a vó.

No restaurante, mamãe pediu legumes no vapor. Vovó, risoto. Eu, bife malpassado. “Imagina só ser filho de nazista”, minha mãe imagina, pensando naquele documentário sobre os filhos do Veit Harlan, cineasta do Jud Süß. Eu imagino mais longe: como deve ser bisneto de nazista, tataraneto, alguém sem muitos laços afetivos. Ser somente da mesma estirpe da gente que aperfeiçoou o horror, os automóveis e a filosofia. Gente que tinha certeza de que havia algo de podre no sangue dos outros. Eu sou de uma família pré-nazista, por exemplo, mas quem sabe do que o meu sangue é capaz. “Será que tem algo de podre no nosso sangue que nos faz achar que há algo de podre no sangue dos outros?”, imagino. Será que somos o povo escolhido para ter ódio? Os filhos de Harlan têm muita vergonha.

Os garçons que passam são todos negros, pardos. Caras de cansaço. Caras de raiva contida. Vivem no morro do Cantagalo? Como eu vou saber?

Vó: (Olha à volta, o pescoço todo quebradiço, manchas pretas na pele) Antigamente tinha mais judeu em Copacabana.

Assustador mesmo é ser civilizado.

IV
Responda com sinceridade:

(o) Brasil teve o maior partido nazista fora da Alemanha
(In: Gazeta do Povo, 24/09/2011)

(a) O que será que bis-vovô estava fazendo nos anos 30 e 40? _______________.
(b) Quantos parentes nossos fizeram parte da Sociedade Alemã de Nova Friburgo, e do Partido Nazista de Presidente Venceslau, São Paulo, Timbó, Curitiba? ___________________.
(c) Quantos ergueram suas taças à saúde de Hitler naquela comemoração do 20 de abril de 1935, na Sociedade Alemã de Friburgo? _1_.

Teste o seu germanismo (de 0 a 10): Você é organizado/controlado? __. Você já pensou em montar indústria? __. Você é austero com dinheiro? __. Você se sente desconfortável na presença de estranhos? __. Como anda a sua memória? _____________________.

Há um tempo, soube de um velho em Nova Friburgo que todo ano solta fogos no aniversário do Führer. Ainda.

A cidade sofreu recentemente a maior catástrofe climática da história do país. Os turistas vão lá tirar fotos dos prédios em ruínas. Friburgo é a capital da moda íntima. Vovó nasceu lá, depois foi morar em Copa.

Não sei se tem muito ou pouco judeu em Friburgo.

“Isso você tem que pagar logo”, a mãe me diz, “senão meu nome fica sujo”. Está falando de uma conta de gás que eu esqueci de pagar.

Vó: Antigamente tinha mais judeu em Copacabana.

Diminuíram as luzes do restaurante e os garçons vieram colocar duas velas no centro de cada mesa – “Que chique”, mamãe disse – para justificar os preços do cardápio.

Vó: Não tinha? Judeus? (Pausa) Juden!

Mãe: (Sem graça, sem paciência) Tinha, mãe.

Era difícil vovó calar aquela boca, sempre aberta.

(Ninguém parou de comer, nenhum suspiro de surpresa.)

Alguns minutos depois, mamãe me olhou com uma cara que decifrei fácil: queria que vovó morresse logo, mas como era difícil admitir: “Descender, que inferno”.

Aí a vó descambou a falar longamente, olhando uma vez para cada garçom, uma para mim, uma para todos os presentes, que não prestaram atenção. Aquela mandíbula molenga prestes a despencar do rosto. Nem eu, nem mamãe entendemos nada do discurso, que estava em alemão. Mas o escutamos inteiro, com uma paixãozinha meio secreta pelos fonemas e raivas de minha avó, nosso velho idioma. Ainda está viva.

Victor Heringer (Rio de Janeiro, 1988) é autor de Glória (7Letras, 2012, Prêmio Jabuti 2013) e Automatógrafo (poesia, 7Letras, 2011). Segundo a tradição familiar, descendente de judeus asquenazins por parte de pai e sefardim por parte de mãe. Site: http://automatografo.org.

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