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Resenha

O mapa de toda a América Latina

O labirinto da solidão | Octavio Paz | Cosac Naify, Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht, 384 páginas, R$ 69,00

Resenhas_O labirintoeduardo cesarToda e qualquer resenha de O labirinto da solidão resultará insuficiente. Ficará sempre abaixo do nível de pensamento atingido neste livro. O nível de Octavio Paz é o do pensamento paradoxal, aquele que desafia as ideias feitas, a convenção estabelecida que separa irreversivelmente os opostos, tais como história e mito, o sagrado e o profano, razão e sentimento, indivíduo e sociedade, solidão e comunhão, civilização e barbárie, criação e destruição, festa e luto, direita e esquerda, e outros tantos lugares-comuns abrigados na inércia das ideias.

Não se pode compreender o México sem reconhecer que os contrários coexistem entre si, conjugam-se uns com os outros, abraçam-se amorosamente e com frequência se matam teatralmente. O mexicano, que se fecha e preserva (palavras de Octavio), mascara o rosto e o sorriso, “ama as festas e as reuniões públicas”, tudo sem esquecer que ele é um “povo ritual”. Na festa o mexicano se abre, parte para a embriaguez e a loucura, “assobia, grita, canta, solta fogos, descarrega sua pistola no ar”. Recupera a festa como orgia coletiva. “Na Festa, a sociedade comunga consigo mesma”, mas “a noite de festa também é uma noite de luto”.

Se há um filósofo com o qual Octavio guarda a maior afinidade, é Heráclito de Éfeso (século VI a.C.): “Tudo flui”, o princípio do mundo é o devir, que está sempre correndo entre os contrários. O devir de Heráclito é a comunhão vital dos contrários: “Não entendem como a discórdia pode pôr-se de acordo consigo mesma. É uma mútua adaptação, como a do arco e da lira” (Heráclito, fragmento 51). Por coincidência, Octavio Paz nomeou um de seus livros com estas mesmas palavras, El arco y la lira (Fondo de Cultura Económica, 1956). No texto octaviano acompanhamos a inteligência do autor em movimento, identificada com a essência mesma do mundo, na qual os contrários se conjugam no fluxo daquele rio no qual ninguém se banha duas vezes. Fluxo musical como o que se derrama do conúbio entre o arco e a lira.

Segundo Ortega y Gasset, o Universo está constituído com metáforas, começando pela comparação, que deu origem a quase todas as palavras, até os grandes mitos cósmicos que sustentam a civilização. Tomando ao pé da letra a proposta de Ortega, Octavio pensa metaforicamente, aplicando a metáfora como a matriz de sua ideação conceptual.  A força ensaística de Octavio Paz reside toda ela no uso brilhante do pensamento simbólico.

Não há exagero em afirmar que a vida e a obra desse diversificado poeta e ensaísta estão dominadas por um tema único: o México, seu destino e sua paixão, sua história e sua mitologia. A busca do México associa-se à busca dele mesmo, em carne e osso. O indivíduo é tanto mais produtivo espiritualmente quanto mais imerso na vida da comunidade. A base, o húmus desse patriotismo é essa imersão profunda na comunidade. Na vida cotidiana e na vida heroica da comunidade.

Paz ama sua pátria para entendê-la. Sua penetração intelectual consuma-se num tipo sapiencial e videncial de inteligibilidade. Paz pertence à raça dos videntes. Seu patriotismo começa no subsolo arqueológico do México, repousa nas praças, na arquitetura e na literatura da Nova Espanha, inflama-se na Revolução Mexicana, demora-se na indagação do presente do seu país e projeta-se com ele na direção do futuro. O que ele diz de sua compatriota do século XVII, Sor Juana Inés de la Cruz – “fue la conciencia intelectual de su sociedad” –, aplica-se sob medida a ele mesmo, que é a consciência da sociedade mexicana alargada em consciência de toda a América Latina.

O texto de O labirinto da solidão, examinado à contraluz, entremostra o mapa de toda a América Latina e, inscrito nele, o contorno do nosso país. Pelo seu perfil trágico e hierático de matriz asteca, o México é único na América espanhola e portuguesa. Mas estamos todos unidos na AL por vícios atávicos de formação, a indistinção entre o público e o privado, entre direitos e privilégios, a tradição de autoritarismo, caudilhismo e populismo; e a sombra da ilegitimidade nos persegue. Mantemos viva a tradição antidemocrática, antiliberal e anticapitalista, apesar de fingirmos o contrário. A mentira política é nossa bandeira.

Mas alguma coisa positiva nos aproxima na AL. A primeira é a cultura daquilo que Gilberto Freyre chama “o tempo ibérico” , o oposto do time is money dos ianques, o tempo que vale por si mesmo (da festa, da música e da arte popular, do “jogar conversa fora” etc.). A outra é o papel da Igreja Católica como formadora dos corações e mentes ao tempo da colonização. O Brasil e outros países hispânicos, mais do que possessões da Espanha e de Portugal, eram províncias eclesiásticas. Segundo Octavio Paz, “sem a Igreja, o destino dos índios teria sido muito diverso. … Pela fé católica, os índios, em situação de orfandade, rompidos os laços com suas antigas culturas, mortos tanto os seus deuses quanto as suas cidades, encontraram um lugar no mundo. Esta possibilidade de pertencer a uma ordem viva, ainda que na base da pirâmide social, foi desapiedadamente negada aos nativos pelos protestantes da Nova Inglaterra. Esquecemos com frequência que pertencer à fé católica significava encontrar um lugar no cosmos” (O labirinto da solidão).

Gilberto de Mello Kujawski é escritor e jornalista, autor do ensaio O sentido da vida (2ª. edição, no prelo).

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