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João Baptista Pereira

Companheiro de viagem

Manu MaltezMal acabei de me sentar na poltrona três do ônibus que me conduziria ao litoral norte de São Paulo, ouço uma voz masculina “Esse lugar é o quatro?”, referindo-se à poltrona ao lado da minha. “Não sei”, respondi-lhe sem levantar os olhos, preocupado que estava em organizar algumas peças de roupa em minha mochila. Após minha fria resposta, o passageiro sentou-se a meu lado.

Foi então que pude perceber o dono da voz: cabelos quase brancos, ralos, que não autorizavam, porém, chamá-lo de careca ou calvo. Fisionomia dura, talvez rude, o que me levou a compará-lo a um camponês português. As experiências de pesquisa de campo em Portugal deixaram-me como herança a imagem do português rural como homem rústico, de pouco falar, nenhuma jovialidade, poucos sorrisos. Deve ser um descendente de português que não perdeu, entre nós, seus traços fisionômicos, pensei. Ou talvez fossem aqueles óculos de aro preto que endureciam sua aparência, dando-me a impressão de que carregava uma alma pesada. Na verdade, eu nem estava interessado nesses traços de meu vizinho. O que realmente me preocupava era a sua massa corpórea: se era magro ou gordo. Isto porque ao comprar um bilhete de ônibus acalento sempre dois desejos: primeiro que o passageiro que venha sentar-se a meu lado não tome muito espaço com seu volume corporal, seja músculo, seja gordura. Gosto de ter liberdade para me movimentar à vontade dentro dos limites de meu assento, sem ser obrigado a compartilhar calores e odores alheios. Segundo que, homem ou mulher, seja um passageiro calado. Detesto as pessoas que se aproveitam de transitória proximidade física e começam a falar sobre tudo ou sobre nada.

Realizava aquela viagem a conselho de um amigo para contemplar a paisagem da serra de Mogi das Cruzes, só possível em ônibus, já que o carro prende o olhar nos limites da estrada. Era só isso, ou tudo isso que queria naquela manhã cheia de sol.

No fundo, uma viagem de ônibus para mim representa muito mais do que uma maneira de me transportar de um local a outro. Gosto, nessas raras viagens, de marcar encontro comigo mesmo, pensar em coisas que a pressa do dia a dia me impede de pensar, cochilar sem preocupação, construir projetos que talvez nunca passem de projetos. Uma pessoa que toma seu espaço e fala sem parar elimina esse lado prazeroso da viagem. Mas o “português” era magro e calado. Estava portanto dentro de meu perfil ideal. Até que ouço o som de um celular. (Abro este parêntesis para prevenir que não sou contra os telefones móveis, mas ninguém me verá cruzar ruas, passar por pessoas em espaços públicos, dirigir carro falando ao celular. Recuso-me a espalhar minha intimidade pelo mundo afora. Chego a ter pudor de ser obrigado a ouvir conversas que nos enfiam ouvidos adentro, sem pedir licença, sem maiores cerimônias. O celular para mim, que eu tenho, é reservado para atender eventualidades que não poderiam por motivos vários ser tratadas em outras ocasiões.) Voltando ao português e a seu celular, o toque continuou, até que o companheiro de viagem, para mim já definitivamente português, inclinou-se levemente na poltrona, sacou da cintura um celular, assim como os personagens cinematográficos de faroeste faziam ou fazem, e em tom de desculpas disse: “É o meu”. Noto que ele amarrou mais a fisionomia já tão austera. “Claro que sou eu! Ah! Não reconheceu minha voz? Se você ligou pro meu celular, só poderia ser eu. Vá logo dizendo o que você quer. Então por que me telefonou?” Silêncio. O celular volta para a cintura e minutos mais tarde toca novamente: “Já falei que sou eu. Sim, estou no ônibus que vai para Ilhabela. Não. Estou só. Com quem você gostaria que estivesse? A manicure? Você continua desmiolada, desorientada”. Desta vez o celular fica em suas mãos, certamente à espera de outra chamada. Aproveito a oportunidade e olho os seus dedos. Unhas bem cuidadas contrastam com sua pele enrugada, seca, áspera. Realmente, havia na estória uma manicure, embora não soubesse dizer se ela ficou apenas no tratamento das unhas. Menos de 10 minutos depois, novamente o celular tocou: “Você queria vir comigo? Não se perguntou se eu queria você nesta viagem? Vocês armaram pra cima de mim. Não encontrei a chave do meu carro. Ah! Não foi você? Mas só você sabe onde guardo a chave. Para acreditar em você só com testemunhas e papel assinado. Deixe de ser mentirosa. Bem, se sua filha pegou o carro, ela fez isso para sair com o namorado. Já falei, estou cansado de bancar o bobo de vocês. Chega!”. Com essa expressão, dá por encerrada a ligação. Teimoso, o celular volta a tocar instantes depois. “Você de novo? Ah, se arrependimento matasse! Pra que, me diga, pra que eu fui me casar com você? Dei-lhe anos e muito tempo de minha vida, agora chega! Ah! Você não quer falar mais comigo? Não fale. É só não ligar. Você é quem sabe, desligue então e passe bem.” Quase meia hora se passa. Português inquieto e celular silencioso. A mulher resolveu parar, pensei aliviado. Mal acabei de pensar, o português pegou o celular, olhou-o demoradamente, passou-o de uma mão a outra. Pôs a mão direita no queixo. Olhou para o teto do ônibus e depois para o celular. Teclou os números, impacientemente. Esperou. Nada. Insistiu uma, duas, dez vezes.

Finalmente alguém atende. “Onde você estava?” A interpelação sai alta e grosseira. “Mentira! Você mente sempre, onde você estava? Ou melhor, com quem você estava entretida? Eu sei com quem. Eu sei de tudo, não adianta jurar. Suas juras soam falsas como você. Quando eu voltar tenho uma surpresa para você na gaveta da cômoda. Você vai pagar toda humilhação que está me fazendo passar. Toda. Registre bem. T-O-D-A. Não precisa arrombar a gaveta não, sua cretina. Vou lhe dizer o que a espera e já.” Nesse instante, o motorista do ônibus anuncia: Jureia. Volta-se ao passageiro português: “Seu ponto de descida, senhor”. Ele apanha a mala, celular à mão, desce do ônibus e se põe a caminhar. Pude, então, vê-lo de corpo inteiro: corpo arquejado, talvez pelos anos, talvez pelas desavenças, talvez pelas suspeitas, talvez pelos desencontros no amor.

Acompanhei sem querer toda a estória e perdi o final. Fazer o quê? Resignei-me na poltrona, olhei a paisagem que me restava, cochilei e retornei a meus projetos e sonhos interrompidos.

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João Baptista Borges Pereira é professor emérito da FFLCH/USP.

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