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ASTRONOMIA

Eficiência monumental

Buracos negros gigantes consomem menos energia do que se pensava, mas impulsionam os maiores jatos de gás e radiação do Universo

Jatos de partículas e radiação emitidos pelo buraco negro da galáxia Centauro A, distante 12 milhões de anos-luz da Via Láctea

nasa / doe / fermi lat collaboration / capella observatoryJatos de partículas e radiação emitidos pelo buraco negro da galáxia Centauro A, distante 12 milhões de anos-luz da Via Lácteanasa / doe / fermi lat collaboration / capella observatory

Continua justa a reputação de os buracos negros serem imensos glutões ou aspiradores de pó de escala cósmica, capazes de sugar inexoravelmente tudo o que estiver a seu redor – em geral consomem o gás do meio interestelar, embora não sejam raros os buracos negros maiores, encontrados nos centros das galáxias, engolirem estrelas inteiras de uma vez. Esses buracos negros gigantes, entretanto, não consomem tanto gás quanto se pensava. Viu-se agora que, na verdade, eles expulsam para bem longe de sua vizinhança quase tanto gás quanto arrastam para lá. Mesmo com uma dieta menos calórica do que os astrofísicos supunham até pouco tempo atrás, esses buracos negros ainda têm energia suficiente para disparar jatos de gás acelerado a velocidades comparáveis com a da luz que se estendem por milhões de anos-luz para fora de suas galáxias. Esses jatos são os maiores e mais poderosos aceleradores de partículas do Universo (ver Pesquisa FAPESP nº 200). “É completamente contraintuitivo”, diz Rodrigo Nemmen, pesquisador do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP). “Como o gás que estava caindo no buraco negro passa a escapar dele profusamente?”

Nemmen juntou-se ao astrofísico Alexander Tchekhovskoy, da Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos, para comparar com mais precisão a quantidade de energia que, na forma de gás quente, alimenta os buracos negros gigantes com a quantidade de energia que emana deles na forma de jatos. A dupla analisou dezenas de buracos negros gigantes no centro de galáxias observadas pelo telescópio espacial de raios X Chandra. O estudo sugere que a energia dos jatos é quase sempre maior do que a fornecida pelo gás quente absorvido pelo buraco negro. Em muitos casos, os jatos são mais que três vezes mais energéticos do que o gás que o buraco sorve. Nemmen compara o absurdo da situação com a de um motor imaginário que fornecesse ao automóvel três vezes mais energia do que a contida em seu combustível. “Tem alguma coisa errada, pois a conservação da energia é a lei da física mais fundamental que existe”, diz.

Apenas uma solução para o paradoxo não viola as leis da física. Os jatos disparados pelo buraco negro só podem ser tão energéticos se houver uma fonte extra de energia, muito mais poderosa do que o gás quente. Embora a análise de Nemmen e Tchekhovskoy não esclareça definitivamente que fonte é essa, os números que encontraram favorecem uma teoria discutida desde o final dos anos 1970 pelos astrofísicos: a ideia de que os jatos são criados por campos magnéticos moldados e fortalecidos por uma energia que vem de dentro do próprio buraco negro.

Um buraco negro, Nemmen explica, é uma região esférica do espaço com uma força de atração gravitacional tão forte que uma espaçonave – ou qualquer outro objeto – precisaria alcançar uma velocidade maior do que a da luz para escapar dele. A fronteira do buraco é chamada de horizonte de eventos. “Se nem a luz escapa, e ela é a coisa mais rápida do Universo, uma vez ultrapassado o horizonte de eventos, nada escapa”, ele diz.

Os astrônomos não fazem ideia do que existe dentro dos buracos negros, que surgiram primeiro como solução matemática de uma das equações da teoria da relatividade geral, publicada por Albert Einstein em 1915. Mas desde os anos 1960 os pesquisadores acumulam evidências indiretas de que buracos negros de vários tamanhos existem em abundância no Universo.

Rodízio gaúcho
Há provas suficientes, por exemplo, de que no centro da Via Láctea reside um objeto escuro consideravelmente menor que o Sistema Solar, com uma massa 4 milhões de vezes maior que a do Sol. “Levando em conta tudo o que sabemos sobre gravitação e astrofísica, tem de haver um buraco negro ali”, diz Nemmen. “As observações astronômicas, especialmente as do telescópio espacial Hubble, estabeleceram que a maioria das galáxias possui um buraco negro em seu centro.”

O buraco negro no centro da Via Láctea, porém, é diferente dos encontrados no centro de outras galáxias. Ele permanece tranquilo a maior parte do tempo – engolindo um pouco de gás ou uma estrelinha de vez em quando –, enquanto os localizados no centro de algumas galáxias são muito mais ativos e brilham milhares de vezes mais do que todas as estrelas das galáxias que os abrigam.

Esse brilho vem da radiação emitida pelo gás do meio interestelar que cai copiosamente em direção ao centro galáctico. “Esses buracos negros ficam como eu em um rodízio de churrasco, se alimentando vorazmente”, diz Nemmen, que nasceu na cidade gaúcha de Passo Fundo, fez graduação e doutorado em Porto Alegre, na Universidade Federal do Rio Grande de Sul, e assumiu o cargo de professor na USP em abril, depois de realizar um estágio de pós-doutoramento na Nasa.

Vivendo nesse regime de rodízio gaúcho, esses buracos negros também chamados de núcleos ativos de galáxias (AGNs, na sigla em inglês) fazem outra coisa extraordinária: emitem um par de imensos jatos de gás brilhante para fora de suas galáxias. O gás desses jatos viaja pelo espaço intergaláctico, emitindo radiação de altíssima energia.

Os pesquisadores ainda debatem a origem desses jatos. Uma das possibilidades envolve o disco de gás que gira bem próximo ao horizonte de eventos. “O gás gira com muita energia e poderia ser desviado e canalizado em jatos”, diz Nemmen. Outra possibilidade, segundo ele, envolve os campos magnéticos gerados pelo gás quente eletricamente carregado bem próximo ao horizonte de eventos. “Esses campos conseguiriam extrair energia do próprio buraco negro e transferi-la ao gás”, explica.

Essa transferência de energia seria possível porque, além da força de atração para dentro do horizonte de eventos, os buracos negros possuem grande energia de rotação, que obriga tudo a sua volta a girar em um mesmo sentido. Esse redemoinho espacial arrastaria as linhas do campo magnético do gás em volta do horizonte de eventos, como fios de lã enrolados em um novelo. Já em 1977, cálculos dos astrofísicos Roger Blandford e Roman Znajek sugeriram que a energia dessas linhas poderia esculpir e impulsionar os jatos. Desde então, simulações em computador dos AGNs, algumas realizadas por Tchekhovskoy, colega de Nemmen, confirmam que o mecanismo de Blandford-Znajek é a fonte de energia mais provável para os jatos.

“Os estudos teóricos têm sugerido fortemente isso, mas as observações ainda não testaram essas ideias muito bem”, diz Nemmen. Para comparar melhor as observações com a teoria, ele e Tchekhovskoy resolveram pensar nos AGNs como máquinas. “Imagine um motor que não podemos examinar por dentro”, Nemmen compara. “Pode-se tentar entender como a máquina funciona medindo o seu rendimento, comparando quanto combustível o abastece com a energia que sai dele.”

Esfera imaginária
Vasculhando dados do telescópio espacial Chandra, a dupla selecionou 27 AGNs que foram observados com detalhe suficiente para determinar quanta energia entra em uma esfera imaginária em volta do buraco negro com um raio de cerca de 1 ano-luz e quanta sai dela. Para estimar a energia que abastece essa máquina, eles calcularam quanto gás entra nessa região, qual sua velocidade e temperatura. Nem todo o gás que adentra essa esfera cai direto no buraco negro. O gás é tão quente, tão turbulento e gira tão depressa que boa parte dele acaba ganhando força para escapar antes que seja tarde demais. “Estudos anteriores estimaram esse abastecimento de forma inadequada”, afirma Nemmen. “Observações do centro da Via Láctea e da galáxia NGC3115 feitas nos últimos dois anos mostram uma perda enorme de gás.”

Já a energia que escapa da máquina, os astrofísicos mediram observando como os raios X emitidos pelos jatos inflam duas enormes cavidades de gás quente abaixo e acima das galáxias (ver Pesquisa Fapesp nº 144). “Sai mais energia do que entra”, conclui Nemmen. “Fazendo as contas, fomos capazes de explicar esse rendimento assumindo que a energia extra deve vir da rotação do buraco negro.”

A conclusão coincide com a de outro estudo de Tchekhovskoy, publicado em junho na Nature. Ele e seus colegas encontraram uma relação entre os campos magnéticos dos jatos e a luz emitida pelos discos de gás. Essa relação só faz sentido se os jatos tiverem sido criados por linhas magnéticas alimentadas pelos buracos negros. Nemmen lembra, porém, que há incertezas nas observações. Dados mais consistentes exigirão medições mais precisas dos jatos. “Para observarmos a formação dos jatos diretamente”, explica, “precisaremos de um telescópio de raios X com resolução milhares de vezes melhor que a do Chandra”.

Duas ou três formas de ser morto por um buraco negro

Cair em um buraco negro é fatal. Ultrapassado o horizonte de eventos, não é possível escapar nem pedir socorro. O destino de uma pessoa que conseguisse atravessar essa região é ser desintegrada por forças gravitacionais antes de alcançar o centro do buraco negro, a dita singularidade, que os físicos não sabem ao certo o que é.

O que muita gente não imagina, porém, é que buracos negros podem ser mortais mesmo a vários anos-luz de distância. “Os fenômenos mais energéticos do Universo acontecem na vizinhança de buracos negros”, informa o astrofísico Rodrigo Nemmen, da USP, à plateia de suas palestras de divulgação científica. Nas apresentações feitas neste ano em São Paulo Nemmen usou as diferentes formas de ser exterminado por um buraco negro para introduzir ao público a astronomia e a física desses objetos cuja existência até hoje só foi inferida por observações indiretas. “É a didática do fatalismo”, conta Nemmen.

Ser frito por radiação é uma das maneiras de ser morto por um buraco negro. Quando uma estrela com uma massa centenas de vezes maior que a do Sol colapsa, seu núcleo se transforma em um buraco negro. Esse buraco negro se alimenta do material restante de modo tão explosivo que lança um jato de partículas e radiação conhecido como explosão de raios gama, capaz de incinerar tudo o que estiver no caminho.

Não é só no início de sua vida que os buracos negros lançam para o espaço tempestades de radiação. Buracos negros, grandes ou pequenos, costumam atrair para suas proximidades nuvens de gás que compõem o disco de acreção. A rotação do disco aquece o gás a tal ponto que ele passa a emitir níveis de radiação que causariam câncer em alguém a vários anos-luz de distância.

Tão ruim quanto se aproximar desse disco pode ser ficar no caminho de um jato de gás e partículas expelido pelo buraco negro de um núcleo galáctico ativo. Em 2007 astrônomos observaram uma galáxia ser atingida em cheio pelo jato de sua vizinha, que recebeu o nome de galáxia da morte. Os planetas da galáxia atingida devem ter sofrido uma chuva de radiação.

Mesmo que sobrevivesse à radiação, alguém próximo a um buraco negro correria o sério risco de ter seu corpo esticado como um espaguete – a essa morte alla italiana os físicos chamam de espaguetificação. Na vizinhança do horizonte de eventos, a diferença da força gravitacional entre os pés e a cabeça de uma pessoa caindo em direção ao buraco negro pode ser suficiente para esticar e espremer seu corpo até transformá-lo em espaguete.

Quanto mais próximo do horizonte de eventos, maior a probabilidade de que o turbilhão criado pela rotação do buraco negro também espaguetifique o corpo de quem estiver por ali, fazendo-o girar de uma maneira que Nemmen compara a uma roda de tortura medieval.

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