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Resenha

Passado desenterrado

Descobrindo a arqueologia: o que os mortos podem nos contar sobre a vida? | Luis Pezo Lanfranco, Cecília Petronilho e Sabine Eggers | Cortez Editora, 108 páginas, R$ 38,00

Resenha_ArqueologiaEduardo CesarA morte de um animal doméstico, em geral o cão ou o gato da família, pode ser o primeiro contato de muitas crianças com a questão da finitude da vida. Na escola de Felipe e Luísa, o óbito inesperado de Cristal, uma velha jabuti com quem os alunos brincavam diariamente no gramado, comoveu os alunos. Uma reunião foi feita para decidir que fim seria dado ao corpo do bicho. Cremar ou enterrar? A segunda opção ganhou a votação e um funcionário da escola abriu uma cova. Choro, sentimento de vazio, saudade. Cada criança se despediu de Cristal à sua maneira. A jabuti foi sepultada com todo o cuidado ao som de uma música que começou e terminou ninguém sabe como. Fechada a cova, as crianças fizeram com folhas e gravetos um círculo em torno do túmulo improvisado. Em casa à noite, Felipe e Luísa disseram ao avô Roberto, veterano arqueólogo, como fora o dia na escola. Falaram da morte da jabuti, das homenagens e do enterro em si. O avô então se pôs a contar aos netinhos que a forma de enterrar os mortos diz muito sobre um povo, uma época.

Esse episódio, narrado nas páginas iniciais de Descobrindo a arqueologia: o que os mortos podem nos contar sobre a vida?, junta elementos reais e fictícios. A história da vida e da morte da jabuti Cristal é verdadeira, mas ela não ocorreu em uma escola; seu palco foi a Creche Central da Universidade de São Paulo (USP). O arqueólogo e o casal de netinhos são uma invenção do trio de autores do livro, a bioarqueóloga Sabine Eggers, professora do Instituto de Biociências (IB) da USP, a bióloga Cecília Petronilho e Luis Pezo Lanfranco, seu aluno de pós-graduação. A criação desses personagens é uma forma de fisgar o público infantojuvenil, a quem a obra se destina, e introduzi-lo no mundo da arqueologia, ciência multidisciplinar que estuda a cultura material, os restos orgânicos, as ossadas e os sepultamentos feitos pelas sociedades do passado. As conversas entre o avô Roberto e os pequenos Felipe e Luísa funcionam como uma introdução, uma preparação, aos distintos temas e aos achados arqueológicos que serão tratados nas páginas imediatamente seguintes do livro.

Descobrindo a arqueologia é didático, instrutivo, mas sem recorrer ao tom professoral. Em textos curtos, pilulados, que lembram um microverbete de um almanaque ou revista, a obra passa conceitos importantes para a arqueologia, como o que é estratigrafia (estudo das diferentes camadas sobrepostas de um solo), qual a diferença entre DNA nuclear e mitocondrial ou de que forma é feita a datação por carbono 14. Não faltam fotos dos achados arqueológicos, desenhos e reconstituições artísticas de como podem ter sido a aparência e o modo de vida de povos do passado (as ilustrações são de Alecsandra Fernandes). Cada sítio arqueológico associado a um povo ou cultura do passado é acompanhado de um mapa com sua localização geográfica e uma linha do tempo que informa o período em que essa sociedade floresceu.

Dessa forma, o leitor toma conhecimento ou relembra “histórias trágicas e de amor, de escravo, de guerreiro, de princesa, de pirata”, para usar as palavras que constam da contracapa do livro. Alguns sítios arqueológicos são muito antigos e falam de sociedades pouco conhecidas entre o público leigo. Esse é o caso do assentamento que pertenceu a uma população de 50 caçadores de mamute encontrado nos anos 1960 na localidade de Sunghir, na Rússia. Esses indivíduos viveram em uma zona fria há 28 mil anos e são um dos mais antigos registros da presença do Homo sapiens em solo europeu. Dividindo uma tumba desse sítio, foram resgatados esqueletos de dois adolescentes, um menino e uma menina, que exames posteriores de DNA mostraram ser irmãos.

Além de abordar sítios do exterior ou que foram notícia muitos anos atrás e hoje provavelmente não fazem parte do imaginário arqueológico das novas gerações, Sabine, Cecília e Lanfranco se preocuparam em rechear as páginas do livro com achados ligados à pré-história brasileira. Esse cuidado transparece, por exemplo, nas páginas dedicadas às práticas funerárias do povo de Luzia, o famoso crânio de 11 mil anos resgatado em Lagoa Santa, Minas Gerais, e aos hábitos das populações costeiras de até 8 mil anos de idade que erigiram sambaquis (amontoados de conchas) sobretudo no trecho de litoral entre o Rio de Janeiro e Santa Catarina. As pinturas rupestres da serra do Capivara, no Piauí, também são mencionadas. É sempre estimulante ver a pesquisa nacional em uma obra de divulgação, ainda mais em livro para o público infantojuvenil.

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