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Rafael Iotti

Diálogo

Conto_Fapesp jan2015-teste5.1azeite deleos– Agora tá nas mãos de Deus.

– Como assim, pai?

– Como assim o quê?

– A mãe tá internada no hospital, não na igreja.

– Eu sei, idiota. Mas têm coisas que o hospital não cura.

– Tipo câncer?

– Tipo câncer.

– Claro que cura, pai.

– Não cura. Tu não vê quantas pessoas morrem de câncer?

– Tu acha que todas elas não acreditam em deus?

– Não.

– Deus não existe, pai.

– Como assim, pai?

– Como assim o quê?

– A mãe tá internada no hospital, não na igreja.

– Eu sei, idiota. Mas têm coisas que o hospital não cura.

– Tipo câncer?

– Tipo câncer.

– Claro que cura, pai.

– Não cura. Tu não vê quantas pessoas morrem de câncer?

– Tu acha que todas elas não acreditam em deus?

– Não.

– Deus não existe, pai.

– Como Deus não existe?

– Não existe, pai.

– O que tu quer dizer com isso?

– Quero dizer que deus não existe, pai. Se tu, com 56 anos, ainda não descobriu, eu vou ter a cara de pau de te dizer. Deus não existe. E não vai curar a mãe.

– Tu quer que tua mãe morra?

– Não, claro que não, pai. Só tô dizendo que se ela melhorar não vai ser pela eficiência de deus, porque ele não existe.

– Como tu sabe que Deus não existe?

– Porque eu estudo filosofia, pai.

– Eu sempre fui contra tu estudar isso aí.

– Eu sei, pai. Mas não é culpa minha.

– Não é culpa o quê?

– Saber que deus não existe, e te informar disso.

– Deus existe. Quem tu acha que criou o Rio de Janeiro? O céu? A vida?

– Ah, pai.

– Tu não acredita na vida após a morte? Tu tá dizendo que tu nunca mais vai ver tua mãe?

– Tu acha que a mãe vai morrer, pai?

– Se a gente não orar pra Deus vai.

– Pai, deus não tem nada a ver com câncer.

– Tu quer que tua mãe morra, eu sei, assim como tu quer que eu morra.

– O que tu tá falando, pai?

– Tu quer ficar com nossa herança, eu sei, tu quer que a gente morra pra tu herdar a nossa herança que a gente batalhou e só Deus sabe como.

– Vocês não têm herança nenhuma, pai, eu vou querer o quê?

– Tu vai ser filósofo e pobre, eu sei que tu só quer a nossa herança.

– Pai, por favor.

– Tu vem com essas histórias de que Deus não existe e quer que tua mãe morra.

– Pai, eu não quero que a mãe morra. Eu só tô dizendo.

– Eu sei que tu quer que a gente morra.

– Eu só tô dizendo que se ela ficar boa, e eu sei que vai, vai ser por causa da ciência, da quimioterapia que ela tá fazendo.

– Tu não ouviu o que o médico disse?

– Eu sei que é difícil, pai, mas o hospital é bom, os médicos são bons, vai dar tudo certo, sem nenhuma intervenção divina.

– Se Deus não existe como tu sabe que ela vai ficar boa?

– Eu não sei, pai. Eu só espero.

– Então, tu tem fé. Fé em Deus.

– Não, pai, eu tenho fé na ciência, nos médicos, é um hospital bom, a mãe tá em boas mãos.

– Mas esse não é o pior hospital daqui?

– Não, pai, é o hospital mais caro. Eu não sei nem o que tu fez pra poder pagar isso aqui. Mas admiro muito tua atitude.

– Não é tudo de graça?

– Claro que não, pai.

– Como é que não?

– Não é, pai. Esse hospital é particular. Todo tratamento custa dinheiro.

– Tua mãe não me falou isso.

– Mas quem decidiu que ela viria pra cá?

– Ela.

– Como ela?

– Ela decidiu. Eu não me meto nesses assuntos.

– Como que não, pai? Todos familiares próximos têm que estar cientes.

– E tu não tava?

– Pai, eu moro fora. Eu não tava sabendo de nada, mas o hospital é bom e eu sei que vai dar tudo certo por isso. Por causa da ciência.

– Que ciência o quê. Quanto custa isso?

– Isso o quê?

– O tratamento?

– Ah, não sei. Dezenas.

– Dezenas?

– De milhares, pai.

– Como assim?

– Não sei, pai.

.:.

– Carlos?

– Sim, doutor.

– Oi, Carlos, tudo bem?, quem é esse?

– Esse é meu filho, doutor, o Pedro.

– Ah, tudo bem. Só posso falar com os parentes.

– Aconteceu alguma coisa, doutor?

– Na verdade, sim.

– O que aconteceu, doutor?

– Vocês sabem como a situação estava séria. O câncer se alastrou pro outro seio e de nada adiantou a retirada do esquerdo.

– Doutor.

– A gente tentou tudo que pôde. Infelizmente ela não respondeu aos medicamentos.

– Doutor, por favor.

– Meus pêsames. Eu sei como é difícil.

– Doutor, o que o senhor está falando?

– Senhor, a Regina morreu.

– Doutor, o nome da minha mulher é Ivone. Ela está com câncer no pâncreas.

– Ivone?

– Sim, doutor.

– Ah.

– Doutor, o senhor tem alguma notícia da Ivone?

– Perdão. Perdão pelo engano.

– Tudo bem, doutor.

– Ivone…

– Sim, Ivone, doutor…

– Ela foi transferida.

– Transferida?

– Pro SUS… A condição financeira de vocês não permitia que ela ficasse aqui.

– Meu Deus, e agora?

– Agora não sei, senhor Carlos.

– Calma, pai, o SUS também tem médicos bons. Doutor, o senhor sabe qual é a situação da minha mãe?… Ela já tá em tratamento?…

– Não. Ela está na fila.

– …

– Agora só resta acreditar em deus, pai.

 

Rafael Iotti nasceu em Porto Alegre. Escreve para os sites “dos diálogos” e “tirinhas toscas”. Tem três gatos e adora paçoca.

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