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PRÉ-HISTÓRIA

Novas peças para o quebra-cabeça

Dentes de cervo encontrados ao lado de ossos humanos em caverna do Piauí sugerem presença do homem na região há mais de 20 mil anos

Dois dentes de um grande cervo encontrados num sítio pré-histórico nos arredores do Parque Nacional Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, sul do Piauí, devem acirrar o debate sobre a data da chegada do homem moderno nas Américas. Achados a pouco mais de meio metro de profundidade na mesma camada geológica da Toca do Serrote das Moendas em que foram resgatados ossos humanos, os vestígios desses grandes mamíferos foram datados, de forma independente, em dois laboratórios distintos. Um dente foi analisado no Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto; o outro no Departamento de Química do Williams College, de Massachusetts, Estados Unidos. Ambos os exames apontaram na mesma direção: 29 mil anos no primeiro caso e 24 mil anos no segundo. Um terceiro grupo, do campus da Baixada Santista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), determinou a idade de uma camada de concreção, um estrato compactado rico em carbonatos que recobria os sedimentos onde estavam os dentes do animal e os fragmentos de esqueleto humano. Era de esperar que a camada de concreção fosse mais nova do que os restos dos animais. O teste confirmou a expectativa: essa amostra de solo tinha 21 mil anos. As duas datações feitas no Brasil foram realizadas em equipamentos adquiridos com financiamento da FAPESP.

Com os três testes em mãos, o grupo de pesquisadores acredita ter reunido um conjunto de evidências indiretas que demonstra a presença humana no atual semiárido do Nordeste há pelo menos 20 mil anos, muito antes do que advoga a arqueologia mais tradicional sobre o povoamento das Américas. “As três datas se alinham”, afirma o físico Oswaldo Baffa, coordenador do grupo da USP de Ribeirão Preto, um dos autores do trabalho. “Para diminuir as críticas, tivemos o cuidado de fazer as análises das amostras em três lugares diferentes, que trabalharam às cegas, sem saber exatamente o que estavam analisando.” A visão clássica, difundida por grupos norte-americanos, situa a chegada do primeiro grupo de Homo sapiens ao continente por volta de 13 mil anos atrás, por meio da travessia do estreito de Bering, que separa a Ásia do Alasca. As conclusões derivadas dos exames com o material obtido nessa caverna do semiárido nordestino foram publicadas em dezembro em um artigo no periódico científico Journal of Human Evolution. “Não havia colágeno para datar diretamente os ossos humanos da caverna por carbono 14”, diz a arqueóloga Niède Guidon, outra autora do trabalho e presidente da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham). “Mas os resultados das datações dos dentes de cervos e da camada de concreção, obtidos em três laboratório distintos, apontam para uma ocupação humana muito antiga na região.” A Fumdham administra o parque em conjunto com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia vinculada do Ministério do Meio Ambiente.

Desde os anos 1970, Niède e seus colaboradores fazem pesquisas, em especial nas áreas de arqueologia e paleontologia, na região do parque, considerado patrimônio cultural da humanidade pela Unesco. Sua equipe catalogou 1.400 sítios pré-históricos na serra da Capivara, a maior concentração das Américas, dos quais 900 com pinturas rupestres feitas há milhares de anos. Além de figuras humanas, os desenhos nas rochas retratam animais, inclusive o cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus), a espécie de veado cujos dentes foram encontrados na Toca do Serrote das Moendas. Apesar de abundantes, os sítios do semiárido do Piauí nunca forneceram ossadas humanas que pudessem ser datadas pelo método carbono 14, normalmente empregado para determinar a idade de matéria orgânica (ossos, conchas, madeira, carvão, tecido) de até 50 mil anos ou, em certos casos, até 100 mil anos. Indispensável para a datação por essa técnica, a parte orgânica dos ossos é o colágeno, proteína raramente preservada nos esqueletos encontrados na região.

Como não foi possível determinar a idade das ossadas dos sítios potencialmente mais antigos da serra da Capivara, Niède teve de trabalhar quase sempre com o intuito de estabelecer uma cronologia aceitável para o ambiente em que os fragmentos de ossos humanos foram desenterrados e também para artefatos e vestígios que teriam sido produzidos pelas mãos do homem. Nas últimas três décadas, datou restos de fogueiras e artefatos de pedra atribuídos ao H. sapiens, além das ubíquas pinturas rupestres, uma marca da presença humana. Chegou a resultados, ainda questionados por boa parte da comunidade científica, que indicaram a presença humana na região entre 30 mil e 100 mil anos atrás, tendo chegado tão precocemente ali por uma hipotética rota marítima pelo Atlântico. Com o novo trabalho na Toca do Serrote das Moendas, um sítio distante cerca de 5 quilômetros do parque, a arqueóloga adiciona dados, com o auxílio de outras técnicas de datação, para o polêmico quebra-cabeça de quando o homem fincou pé no Nordeste e, por consequência, nas Américas.

Cervo-do-pantanal: animal é retratado em pinturas rupestres da região

JONATHAN WILKINS / WIKIMEDIA COMMONSCervo-do-pantanal: animal é retratado em pinturas rupestres da regiãoJONATHAN WILKINS / WIKIMEDIA COMMONS

Esse sítio pré-histórico ofereceu novas possibilidades de análise. De grande porte, com 35 metros de comprimento por 23 metros de largura em seu maior ponto, a caverna tinha restos de paleofauna, artefatos de pedra, fragmentos de cerâmica e partes de três esqueletos humanos, dois de crianças e um de adulto. Os dois dentes de cervo-do-pantanal estavam um ao lado do outro a uma distância de 35 centímetros dos fragmentos do esqueleto adulto, situados na mesma profundidade.  Essa conformação é um indicativo, embora não irrefutável, de que homem e animal viveram possivelmente na mesma época.

A técnica usada para determinar a idade dos dentes foi a ressonância de spin eletrônico, também chamada espectroscopia de ressonância paramagnética eletrônica. Ela mede a quantidade de radiação ionizante que incidiu sobre uma amostra por meio da concentração de spins criada por essa energia depositada no material. “A princípio, quanto mais antigo for um dente, maior a dose depositada nele”, diz a física Angela Kinoshita, da Universidade Sagrado Coração (USC), de Bauru, e pós-doutoranda no Departamento de Física da USP de Ribeirão Preto, que examinou um dos dentes com essa técnica. Além de registrar os níveis de radiação armazenados no esmalte e na dentina do dente, o cálculo da idade de uma amostra tem de levar em conta as condições específicas do sítio em que o material analisado foi encontrado (níveis locais de radiação emitida por elementos como urânio, tório e potássio) e também a radiação cósmica.

A camada de concreção rica em carbonatos que praticamente selava o estrato sedimentar onde se achavam os dentes do animal e os restos da ossada humana foi datada por outra técnica, a luminescência opticamente estimulada (Loe). Esse método mede os níveis desse tipo de luz presente nos cristais de quartzo de uma camada geológica. “Teoricamente, quanto maior a intensidade do sinal de Loe, mais antiga é a amostra”, explica Sonia Tatumi, física da Unifesp que analisou duas amostras da camada de concreção da Toca do Serrote das Moendas. “O quartzo tem a propriedade de absorver a luz azul e emitir LOE na região do ultravioleta.” Os dados obtidos a partir de uma amostra, retirada da porção mais central da concreção, foram inconclusivos. Mas o exame de um pedaço mais externo da camada forneceu o resultado que aparece no artigo científico: 21 mil anos de idade, com um grau de precisão de quase 94%, segundo Sonia.

Projeto
Avanços em dosimetria, datação arqueológica e caracterização de biomateriais por ressonância de spin eletrônico (nº 2007/06720-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador Responsável Oswaldo Baffa (USP/Ribeirão Preto); Investimento R$ 507.101,73 (FAPESP).

Artigo científico
KINOSHITA, A. et al. Dating human occupation at Toca do Serrote das Moendas, São Raimundo Nonato, Piauí-Brasil by electron spin resonance and optically stimulated luminescence. Journal of Human Evolution. v. 77, p. 187-95. dez. 2014.

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