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Luisa Gleiser

Terceira Guerra Mundial

Conto_229b2fabio zimbresMinha esposa disse que eu deveria voltar a estudar. Disse que iria fazer bem, eu iria me atualizar, descobrir uma paixão nova pelo trabalho. Já que eu lecionava História, por que não um mestrado na mesma área? Ela me abraçava com cheiro de shampoo promocional. Um mestrado aumentaria meu salário, ela e eu sabíamos disso. Um salário melhor talvez arranjasse todos os outros problemas.

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Minha esposa disse que qualquer ideia seria boa. O que importava mais era o projeto, eu sabia. Uma bolsa seria o ideal, ou pelo menos ajuda de custo. Resolvi estudar a Segunda Guerra Mundial, porque era do que meus alunos mais gostavam. Prestavam atenção na destruição, nos documentários, sabiam curiosidades, traziam revistas com Hitler na capa. Esse tipo de destruição sempre chamou a atenção das pessoas.

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Minha esposa disse que gostava da minha empolgação. Comemoramos mandando o Renato dormir na casa da namorada. A ausência do Renato não resolveu todos os outros problemas. Ela brincou com meu cabelo. Peguei no sono pensando em rever uma comparação que tinha feito entre Putin e Stalin na minha bibliografia.

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Minha esposa disse que eu não tinha tempo para mais nada. Era a escola e a pesquisa, a escola e a pesquisa. Ela passou a mão no meu braço. Brincou que até me perdoava por receber bolsa-auxílio, mas eu devia sair um pouco dessa rotina maçante. Ela não queria que eu reencontrasse a paixão nova? Ela me cobrou de levar o Renato no jogo do Botafogo no outro final de semana. Levei o guri ao jogo. Ele não se importou, e eu tampouco. Ele passou o tempo todo enfiado no celular, e eu passei o tempo todo enfiado na ideia de uma comemoração do aniversário da queda do Muro de Berlim. Mikhail Gorbachev falou em público. Me digam quem deixa Mikhail Gorbachev falar em qualquer circunstância? Eu sabia o que isso queria dizer.

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Minha esposa disse que não lembrava quem era Mikhail Gorbachev. Era o bêbado? Mikhail Gorbachev disse que o mundo sempre estava à beira de uma nova Guerra Fria. Disse em público. Disse numa comemoração do aniversário da queda do Muro de Berlim. E minha esposa não sabia quem era Mikhail Gorbachev. Expliquei a ela minha pesquisa de novo. Palavra-chave por palavra-chave. Segunda Guerra Mundial, Getúlio, Alemanha, política externa. Sentada do outro lado da mesa, ela perguntou o que isso tinha a ver com uma catástrofe nuclear. Eu estudava Segunda Guerra Mundial e não Guerra Fria. Apesar de trabalhar num hospital, ela nem tentava saber as diferenças básicas. Não tinha feito nenhum esforço.

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Minha esposa disse que Vladmir Putin nunca diria que poderia conquistar capitais europeias em dois dias. Eu disse que Putin era um Stalin de terno. Ela disse que eu esqueci o bigode. Ouvi a risada dela vir da sala. Ela e Renato, ouvindo o comentário esportivo do rádio, concordaram que eu deveria parar de assistir televisão. Eu disse que um novo líder estava em ascensão. Não entrei na sala de estar. Eles não enxergavam a realidade. Precisei mostrar a realidade à força.

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Minha esposa disse que não queria ouvir essa história de novo.

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Minha esposa disse que eu não precisava comprar tudo aquilo de enlatados. Eu nem sabia o quanto se usava em casa. Organizei as latas por datas de validade. Ela implicou que a gente nunca ia comer tanto milho. Era alguma atividade da escola? Eu disse que não. Uma luz esquisita entrava por uma janela da área de serviço. O guri ouvia um desses rocks no quarto. Não tinha preparo nenhum para o mundo real, criado em um apartamento e sem nem saber nem idiomas estrangeiros nem pegar numa arma. Seria um diplomata de merda e um soldado pior ainda. Não ia saber lidar com um exército invadindo o país. E a Ucrânia ameaçou reiniciar seu programa nuclear. Minha esposa disse que a gente precisava conversar.

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Minha esposa disse que queria fazer terapia de casal. Eu disse que não tínhamos dinheiro para isso. Ela disse que alguma coisa tinha que ser feita. Ela poderia conseguir mais horas no hospital. Eu disse que a nossa sala estava despreparada. Sofás demais, esconderijos demais. Isso e a Polônia mais uma vez sem apoio dentro da Europa. Sabe como a Segunda Guerra Mundial acabou? Com uma bomba nuclear, isso mesmo.

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Minha esposa disse que eu estava obcecado. Disse que iria embora. Gritou comigo. Eu parei de martelar a proteção extra da janela. O que ela queria? Ela ainda cheirava ao shampoo da promoção. Ela disse que iria embora. Eu disse que seria uma a menos para proteger durante o caos nuclear. Ela disse que levaria o Renato. Eu disse que crianças sempre foram as mais fracas e só criavam problemas. Ela disse que eu estava maluco. Eu disse que maluca era ela que não via um palmo à frente dela. A história se repete, entende? Se repete. Ela disse que queria ser uma família normal. As famílias normais morriam nas primeiras quarenta e oito horas depois de um ataque nuclear russo.

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Minha esposa disse que não queria pensar nisso naquele momento. Eu disse que a gente precisava ficar junto. Ela perguntou por quê. Eu disse que gente que se prepara para a Terceira Guerra Mundial junto tem maior probabilidade de sobreviver. Ela disse que esse não era o motivo que ela estava esperando.

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Minha esposa ligou e deixou uma mensagem na caixa-postal. Eu não tinha pagado a pensão. Disse que teria que entrar na justiça. Eu mandei uma mensagem de texto explicando que estava deixando o maior dos bens para eles, a proteção, a comida, a água, o abrigo. Ela não me respondeu. Quando o advogado chegou à casa, não conseguiu nem abrir a porta empurrando alguns engradados de água.

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Minha esposa não disse nada durante a conversa com os advogados. O advogado dela falou, estendeu um contrato. Eu disse que contratos não importariam depois que o mundo entrasse em guerra e em colapso. Ele não sabia que os judeus enviados a Auschwitz tinham seus bens retirados deles e roubados? Por que ele achava que seria diferente? Putin só era o novo Hitler porque Putin, como Hitler, crescia sem oposição. Será que eles não viam? Eles iriam me agradecer, iriam sim. Eu poderia ter ensinado o Renato a atirar, eu disse.

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Minha esposa disse que era temporário. Eu precisava conversar com os médicos. Precisava me comportar. Contou que tinham perguntado de mim na escola e que eu precisava melhorar para poder lecionar. Eu levava jeito com história, ela disse. Eu disse que não iria me comportar, não fazia sentido. Eu disse que a Rússia era uma ameaça muito maior que o Estado Islâmico. Ninguém fazia nada a respeito? Ninguém conseguia ver? O Brasil é um país estratégico. Minha esposa levantou. Disse que voltaria no mesmo horário na semana que vem. Perguntou a alguém da minha dosagem e acenou com a cabeça. Ainda cheirava a shampoo barato, mas como se tivesse recém-entrado em um abrigo nuclear.

Luisa Gleiser é autora do romance Luzes de emergência se acenderão automaticamente (Alfaguara, 2014). Vencedora do Prêmio Sesc por duas vezes (com os livros Contos de mentira e Quiçá) e foi finalista do Prêmio Jabuti em 2012. Também foi incluída na antologia Granta: os melhores jovens escritores brasileiros.

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