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Astronomia

A visão da periferia

Levantamentos identificam galáxias anãs e berçários de estrelas em regiões extremas da Via Láctea

La Silla, no Chile: a Via Láctea (faixa luminosa à esquerda) e duas galáxias vizinhas, a Grande e a Pequena Nuvem de Magalhães

yuri belestky / eso La Silla, no Chile: a Via Láctea (faixa luminosa à esquerda) e duas galáxias vizinhas, a Grande e a Pequena Nuvem de Magalhãesyuri belestky / eso

O retrato já bem sedimentado da Via Láctea, a galáxia que abriga o sistema solar, mostra um disco onde braços coalhados de estrelas, poeira e gás se espalham espiralados a partir de um núcleo central alongado como uma barra. Com o surgimento de meios de observação mais precisos e potentes, essa imagem está se tornando mais nítida e complexa, como mostram três trabalhos divulgados em fevereiro e março deste ano que analisaram regiões remotas da Via Láctea.

Em um deles, um grupo do Departamento de Astronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) identificou dois aglomerados estelares incrustados em uma nuvem de gás situada cerca de 16 mil anos-luz abaixo do plano da galáxia. Os aglomerados foram batizados como Camargo 438 e Camargo 439, em referência a Denilso Camargo, um dos membros da equipe, formada ainda por Charles Bonatto, Eduardo Bica e Gustavo Salerno. Em trabalhos anteriores, eles haviam identificado outros 437 aglomerados. Todos, porém, mais próximos do plano da galáxia.

Um dos novos aglomerados abriga 33 estrelas e o outro, 42. Ambos são muito jovens para os parâmetros astronômicos: têm 2 milhões de anos (o Sol tem 5 bilhões e a Via Láctea, cerca de 13 bilhões). Isso mostra que a nuvem de gás onde estão inseridos é um berçário, no qual continuam surgindo novas estrelas. “É a primeira vez que se detecta a formação de estrelas a uma distância tão grande do disco da galáxia”, conta Camargo.

Os aglomerados foram identificados a partir de imagens do telescópio espacial Wise, da Nasa, lançado em 2009 para fazer observações em infravermelho. “Não é fácil detectar estrelas em nuvens de poeira porque a radiação ultravioleta emitida pelas estrelas de massa elevada é absorvida pela poeira, que a reemite no infravermelho”, diz Camargo. “Esses detectores estão fazendo contribuições importantes para a astronomia.”

Vizinha próxima: à esquerda, a galáxia anã Reticulum II, satélite da Via Láctea identificada pelo DES; ao lado, as estrelas que integram a Reticulum II

ESOVizinha próxima: à esquerda, a galáxia anã Reticulum II, satélite da Via Láctea identificada pelo DES; ao lado, as estrelas que integram a Reticulum IIESO

A maioria das estrelas nasce em aglomerados estelares, dentro das nuvens moleculares gigantes que povoam o disco da galáxia, em especial os braços. Essas nuvens geralmente estão em equilíbrio. Mas perturbações – como colisões com outras nuvens, ondas de choque da explosão de supernovas e encontros com os braços espirais – podem desestabilizá-las e provocar seu colapso sob a influência de sua própria gravidade. Durante o colapso a nuvem se fragmenta e gera regiões mais densas, com massa elevada, nas quais se formam estrelas e planetas.

A Via Láctea abriga duas populações estelares. A primeira contém a maioria das estrelas da galáxia, concentradas no plano do disco, numa faixa que mede cerca de 100 mil anos-luz de extensão por 3 mil anos-luz de espessura. Ali as estrelas se formam continuamente. A segunda população estelar povoa o halo – uma região mais externa, que envolve o disco. No halo, as estrelas se encontram em aglomerados globulares. Essa população é formada por estrelas velhas, com idade da ordem de bilhões de anos, e de baixa metalicidade, características que sugerem que tenham se formado quando a galáxia era jovem – há indícios de que a Via Láctea abriga estrelas quase tão antigas quanto o próprio Universo.

Os pesquisadores da UFRGS identificaram os novos aglomerados estelares se formando numa região onde não se esperava que houvesse formação estelar. Essa descoberta traz um paradoxo: como podem surgir novas estrelas na região que abriga as mais antigas da galáxia? “Uma possibilidade é que esteja ocorrendo o que chamamos de canibalismo”, explica Walter Maciel, da Universidade de São Paulo (USP), que investiga a composição química das estruturas da Via Láctea e não participou desse estudo.

O tal canibalismo é a absorção de estrelas e nuvens de gás que pertencem a outras galáxias e estão sendo puxadas para a Via Láctea pela atração gravitacional. Segundo Maciel, essa hipótese começou a ser aventada no início deste século para explicar a observação de que estrelas da Via Láctea se deslocavam a velocidades para as quais não parecia haver explicação. “Hoje existe pelo menos meia dúzia de casos bem documentados nos quais se acredita que a Via Láctea canibalizou outras galáxias”, diz.

Há outra hipótese. No passado, estrelas do plano da galáxia podem ter seguido o processo de evolução estelar e alcançado o estágio de supernova. Quando isso acontece, segue-se uma violenta explosão que dispersa gás e poeira a distâncias imensas. Parte do material ejetado é atraída pelo empuxo gravitacional e se reaproxima da Via Láctea. Esse mecanismo recebe o nome de chaminé ou fonte galáctica. “Essa seria uma possibilidade mais frequente, enquanto os casos de canibalismo são raros”, diz Maciel.

Ele destaca, porém, uma particularidade nos resultados do grupo de Camargo. “Os casos de canibalismo já observados envolvem galáxias anãs. Ele [Camargo] encontrou aglomerados estelares, que são estruturas muito menores.” É possível, então, que a nuvem onde estão os dois aglomerados esteja associada a alguma galáxia ainda desconhecida.

Camargo concorda que as duas hipóteses podem explicar a origem dos aglomerados e que não é possível, no momento, indicar qual é a correta. Mas ressalta que, mesmo que a poeira tenha vindo de fora, as estrelas, por serem tão jovens, só podem ter se formado na Via Láctea. “É possível que haja mais galáxias anãs orbitando a Via Láctea do que as que conhecemos”, afirma. “Acho que nossa galáxia se formou engolindo outras menores, que estavam em sua periferia, e que esse processo ainda não acabou.”

De olho no escuro
Outra descoberta na periferia da galáxia trouxe os resultados do primeiro ano do Dark Energy Survey (DES), projeto que reúne cerca de 120 pesquisadores de cinco países. Eles anunciaram em março a identificação de oito novos sistemas estelares a pelo menos 100 mil anos-luz do Sol, orbitando a Via Láctea como satélites.

Em operação desde 2013, o DES deve mapear um oitavo do céu com grande detalhe, a fim de lançar novas luzes sobre a energia escura. O braço brasileiro do projeto, o DES-Brazil, colaborou para a descoberta, e o astrônomo brasileiro Basílio Santiago, também da UFRGS, coordena o grupo de trabalho internacional que lida com a Via Láctea (DES-MW).

A detecção no espectro da luz visível de objetos situados a distâncias tamanhas foi possível graças à câmera usada no projeto. A DECam, instalada no Observatório Inter-americano de Cerro Tololo, no Chile, tem resolução equivalente a 570 milhões de pixels, quase 10 vezes maior do que a das câmeras fotográficas mais potentes do mercado. Ela é capaz de capturar quantidades ínfimas de luz, permitindo a observação de estrelas muito distantes. “É o instrumento mais eficiente para a produção de imagens de alta sensibilidade em funcionamento no mundo”, diz Santiago. A DECam começou a operar em 2013 e no ano passado divulgou para a comunidade científica o primeiro catálogo dos objetos celestes emissores de luz identificados pelo DES.

Ainda não está claro se os oito sistemas satélites novos são aglomerados estelares ou galáxias anãs. O mais provável é que a maioria, ou mesmo todos, integrem a segunda opção. Se isso acontecer, o número de galáxias anãs que orbitam a Via Láctea pode passar de 27 para 35.

Os pesquisadores apostam que o estudo das galáxias anãs pode ajudar a conhecer a natureza da matéria escura, um dos mistérios da astronomia contemporânea. Além do tamanho, uma importante diferença entre aglomerados de estrelas e galáxias anãs é o fato de que as últimas são ricas em matéria escura. “São galáxias de baixa densidade. Se toda a matéria que possuem se limitasse à das estrelas, já deveriam ter se desmanchado há muito tempo, por conta das forças de maré que a nossa galáxia exerce sobre elas. Isso mostra que há mais matéria ali, mas não na forma de estrelas”, diz Santiago.

A lista de questões em aberto é maior. Os modelos cosmológicos atuais sugerem que a Via Láctea deveria ter milhares de galáxias anãs ao seu redor, e não apenas as três dúzias já identificadas – isso se as recém-descobertas integrarem essa classificação. “Essa aparente discrepância precisa ser resolvida. Há quem ache que há centenas delas por serem encontradas e que apenas tocamos a ponta do iceberg”, diz Santiago.

Os dados a serem coletados pelo DES nos próximos anos podem ajudar a confirmar ou refutar essas expectativas. Serão centenas de terabytes de informações a serem armazenadas apenas nos catálogos de fontes extraídos das imagens. Para analisar tal quantidade de dados, o DES-Brazil desenvolveu um portal científico com apoio do Laboratório Interinstitucional de e-Astronomia (LineA). O LineA tem como missão ajudar grupos brasileiros a participarem de levantamentos como o DES e de experimentos mais ambiciosos, como o Large Synoptic Survey Telescope (LSST), que captará imagens de mais da metade do céu austral em maior profundidade. “É fundamental que brasileiros continuem a participar de levantamentos internacionais como o LSST”, afirma Santiago.

Outra pesquisa que mirou na discrepância entre o número de galáxias anãs previsto e detectado nos arredores da Via Láctea identificou quatro estrelas do tipo variável cefeida a 180 mil anos-luz do centro da galáxia. O trabalho, do qual participou Roberto Saito, da Universidade Federal de Sergipe, foi feito com  dados do Vista, o maior telescópio em infravermelho do mundo, que funciona no Observatório Europeu do Sul (ESO), no Chile.

O estudo, aceito para publicação no Astrophysical Journal, buscou objetos a altitudes baixas em relação ao plano da galáxia. É uma abordagem difícil, já que a poeira e o gás do disco dificultam as observações. As cefeidas estavam a 4 mil anos-luz de altura em relação ao plano da galáxia. “Também nesse caso foi o infravermelho que permitiu enxergar os objetos”, diz Maciel.

Foi o estudo dessas estrelas que permitiu descobrir que havia outras galáxias no Universo e que ele está em expansão. Periodicamente, essas estrelas aumentam e diminuem de volume. Essa pulsação é acompanhada por uma oscilação no brilho percebido na Terra. Estabelecida a relação entre o período da estrela e as variações no brilho, é possível saber a que distância está da Terra.

Para Saito e os demais autores, a grande distância sugere que as cefeidas encontradas agora pertençam a alguma galáxia anã, de dimensões ignoradas. “É uma hipótese boa, mas não há por ali nenhuma galáxia conhecida. É preciso fazer outros estudos para que ela possa ser comprovada”, avalia Maciel.

Uma decisão estratégica para que os brasileiros continuem a estudar a periferia da Via Láctea é a adesão do país ao ESO, hoje ameaçada por falta de verbas. “Projetos importantes propostos por brasileiros não são contemplados com tempo de observação nos telescópios, por isso essa adesão é fundamental para o crescimento da astronomia no país”, afirma Camargo. “Está aí uma oportunidade para o Brasil deixar a periferia e se instalar no centro da produção de conhecimento científico de ponta.”

Artigos científicos
CHAKRABARTI, S. et al. Clustered cepheid variables 90 kiloparsec from the galactic center. Astrophysical Journal. No prelo.
CAMARGO, D. et al. Discovery of two embedded clusters with Wise in the high galactic latitude cloud HRK 81.4−77.8. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. v. 448, p. 1930-6. 2015.

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