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resenha

A voz coral dos parreirais

Diário de uma terra lontana | José de Souza Martins | Fundação Pró-Memória de São Caetano, 257 páginas

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Diário de uma terra lontana, o sugestivo título deste livro do sociólogo José de Souza Martins, nos remete ao imaginário do emigrante italiano, para o qual a América era a mítica terra lontana, de contornos indefinidos, terra de paz, trabalho, riqueza.

Mas o autor nos leva para dentro dessa terra lontana, o Núcleo Colonial de São Caetano, fundado em 1887, para onde foram encaminhados os italianos, principalmente do Vêneto, da Lombardia e do Molise, atribulados pelas guerras de unificação da Itália, no movimento conhecido como Risorgimento. E o faz através deste “diário”, onde são reunidos os “factos diversos” – pequenas notas publicadas em jornais – e registros em arquivos públicos, no Brasil e fora dele, recolhidos ao longo de 60 anos.

É através desses “factos diversos” – não relevantes para a grande história, mas que entretecem a vida de cada dia, o cotidiano dos pobres e dos esquecidos, dando outro sentido à própria história – que vemos desenrolar-se a vida do Núcleo Colonial, desde o tempo anterior à sua fundação, quando no lugar havia uma fazenda dos monges de São Bento, cuja senzala abrigaria os primeiros imigrantes, até depois, quando o núcleo desaparece, engolido pelos tentáculos da cidade que cresce, pela especulação imobiliária, pela nascente industrialização de São Paulo, que relega às suas margens as indústrias poluentes, indesejadas nas áreas centrais.

Pelas páginas do diário, vemos delinear-se a paisagem, de contornos sempre fugitivos, em que a própria morfologia do terreno sofre mudanças, pelas formas de ocupação que nela se sucedem: vemos a planície encharcada, por onde correm rios que serão retificados e até mudarão de nome, e vemos modificar-se o perfil dos morros e das colinas, de onde, desde o tempo da fazenda dos beneditinos, era retirada a valiosa argila, base da moderna indústria de cerâmica. Vemos a construção da ferrovia, que substituirá os longos trajetos em lombo de mulas ou em barcos ao longo dos caudalosos rios que transportavam os tijolos até o sopé do Mosteiro de São Bento, a ferrovia que reduzirá distâncias e marcará um novo tempo, o do horário dos trens.

E vemos na paisagem vicejarem os primeiros vinhedos e as plantações de frutas e verduras e legumes, que pareciam finalmente realizar o sonho dos imigrantes, sem entenderem bem que, saídos de um mundo em transformação, é um mundo em transformação que encontram na nova terra, o mundo moderno que se delineia no horizonte, com o fim da escravidão, com a passagem da monarquia à República.

E é com tristeza que vemos esses mesmos parreirais destruídos pela filoxera, que junto com as videiras destruirá os sonhos dos imigrantes de transmitir aos filhos e aos netos sua arte de cultivar as vides, renunciar a um trabalho marcado pela sucessão das estações do ano e do ciclo diário da luz solar e se submeterem, como operários, ao novo tempo exigido pelas fábricas – de formicida, de sabão e graxa, de cerâmica – instaladas nos lotes vendidos a preços de quase nada, e que marcam na paisagem o moderno modo de uso do solo.

Pelo diário conhecemos os imigrantes pelo nome e sobrenome, idade, dia de chegada e navio em que chegaram, número do lote a cada um destinado e o número das campas reservadas às numerosas crianças, na área pobre do Cemitério da Consolação, cujas mortes marcam tragicamente o início da vida da colônia. E sabemos dos casamentos e dos batizados, e da festa que, de ritual de sacralização da colheita, momento de laetitia, mesma raiz de laetame (estrume), tomará ela também outro sentido, o tempo não mais marcado pelo repicar dos sinos, mas pelo horário dos trens, que trazem e levam pessoas de fora.

As páginas do diário narram a história da colônia. Mas é uma narrativa feita por outros: como os protagonistas do romance de Alessandro Manzoni, I promessi sposi, citado pelo autor na epígrafe, os protagonistas desta história são mudos. Com exceção de duas cartas, uma de Antonio Rossi, pai da vinicultura na Colônia de São Caetano, e outra em que se lê “siamo in tanti che mangia e pochi che guadagnia”, não ouvimos suas falas dialetais: sua única voz será a voz coral dos parreirais, que temporariamente marcaram a paisagem de São Caetano, a expressar sua identidade e evocar a terra natal, agora lontana.

Liliana Laganá é doutora em Geografia, mestre em Língua e Literatura Italiana, autora de A última fábula, Terra amada e Estrelas do Sul (Casa Amarela/Caros Amigos).

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