Imprimir PDF Republicar

resenha

Entre missões e mediações

O antropólogo e sua bíblia – Ensaios sobre missionários-etnógrafos | Melvina Araújo | Editora FAP-Unifesp, R$ 46,00, 240 páginas

Resenha_Antropologoeduardo cesarA coletânea organizada por Melvina Afra Mendes Araújo, O antropólogo e sua bíblia, versa sobre narrativas missionárias como um fazer que revela aspectos cruciais das etnografias antropológicas. Temos aqui artigos sobre os Kanak e Maurice Lienhart; sobre os bantos de Moçambique e Henri Junot; sobre os mulçumanos do Sudão e o padre Joseph Ohrwalder; sobre os Makuxi e os missionários Consolata; sobre as missões espiritanas do planalto central angolano; sobre as missões dos salesianos em regiões da Amazônia e de Mato Grosso e sobre os missionários católicos no Paraguai e as suas populações. Os artigos questionam as premissas que ordenam os modos missionários de narrar e de conhecer os indígenas, aproximando-os dos dilemas do fazer etnográfico.

Os textos reunidos versam sobre relações entre missionários e indígenas através das narrativas dos primeiros a respeito destes últimos. Trata-se pois de um livro que desvela o saber missionário e os dilemas vividos pelos antropólogos e missionários com e em relação aos seus outros.

Lorenzo Macagno ressalta como os missionários e os antropólogos efetuam suas reflexões a partir de uma genealogia de problemas que herdaram e que buscam até hoje ultrapassar. Através das noções de Kultur e Zivilisation, ressalta o autor, impôs-se uma tensão, embora histórica e sociologicamente configurada, por meio do nosso legado iluminista e/ou romântico. Entre uma perspectiva de assimilação desses outros como parte de uma totalidade humana universal, de base iluminista, e a perspectiva de um desenvolvimento em separado, assentada em um pressuposto romântico sobre o caráter relativo dos “dados” obtidos, abrigam-se os missionários que discutem seus interesses e percepções relativos à proteção/tutela/conversão de seus outros ao cristianismo.

Assim, Patricia Azevedo descreve a forma pela qual a Igreja Católica “pôde gozar de uma situação ímpar no processo de hierarquização social”, ligado, segundo ela, ao ordenamento das raças na administração colonial britânica. Melvina Araújo observa que os mecanismos de aculturação e de assimilação, elaborados pelos missionários em Roraima, abandonaram o que poderia ser considerado um projeto iluminista para adotarem o viés romântico da anticulturação. As duas autoras trabalham a produção política das reivindicações identitárias e os estatutos atribuídos pelo trabalho missionário aos seus outros. Esta perspectiva também é desenvolvida por Iracema Dulley ao se debruçar sobre a interação dos agentes envolvidos no contexto das missões espiritanas no planalto central angolano.

Ressaltando a experiência indígena, Paula Montero enfatiza como a narrativa salesiana não é “um simples produto da imposição de um olhar externalista e europeu”. Da mesma forma que o movimento missionário da Consolata e as missões católicas em Angola, os salesianos participam do engendramento da “tradição” dos indígenas e de suas “culturas”. A narrativa salesiana como todas as outras abordadas nos levam a pensar, acompanhando Montero, sobre as mediações que os antropólogos constroem ao produzir as suas etnografias. O que importa, segundo a autora, é compreender os contextos de mediação que elaboraram nas narrativas missionárias. Alejandra Siffredi, por sua vez, demonstra como o conhecimento, relacionalmente engendrado, se passa no interior de contextos em que índios e missionários disputam as categorias que empregam, não sem combates violentos, como ela insiste.

Os autores desta coletânea pressupõem que os conhecimentos são “impuros”, inseparáveis do seu tempo e tributários das relações que mantiveram com seus “objetos”. Estes “objetos”/sujeitos na antropologia clássica foram, em uma grande medida, congelados e seus povos concebidos como infensos aos contatos e à dominação colonial. Montero, ao asseverar que “o que a etnografia registra em termos de alteridade já é, na verdade, um produto desse processo e, portanto, ela mesma se constitui em instrumento de mediação” desfere um rude golpe sobre a perspectiva etnológica clássica mencionada.

Temos um belo livro e um trabalho coletivo bem elaborado, concebido a partir de eixos comuns. Certamente O antropólogo e sua bíblia vai se impor como uma referência obrigatória no seu campo de estudos.

Patricia Birman é docente do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e pesquisadora do CNPq.

Republicar