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Resenha

Alberto Nepomuceno e a canção brasileira

Canto da língua: Alberto Nepomuceno e a invenção da canção brasileira | Dante Pignatari | Edusp | 464 páginas | R$ 64,00

Resenha_Canto da línguaEduardo CesarDurante muito tempo a figura do compositor cearense Alberto Nepomuceno (1864-1920) foi considerada predominantemente sob o prisma de uma certa ideologia do que deveria ser a música brasileira. Dessa forma, tal como ocorrera com outros compositores do romantismo musical brasileiro – como Carlos Gomes, Henrique Oswald e Alexandre Levy –, muito da bibliografia tradicional sobre Nepomuceno foi contaminada por essa perspectiva, segundo a qual o valor de determinadas obras seria diretamente proporcional às preocupações nacionalistas de seu autor. Luiz Heitor Corrêa de Azevedo definia Nepomuceno como “artista de transição entre o espírito do século XIX na música brasileira, que era o da servidão à Europa, e o do século XX, que era o da libertação”; Vasco Mariz, por sua vez, em sua célebre História da música no Brasil, afirmava que Nepomuceno “não chegou a ser moderno, apesar de haver falecido em 1920”, e que grande parte de seu valor estava em “ter aberto o caminho para Villa-Lobos”, de modo que, sem ele, “talvez ficasse retardada a aceitação da corrente nacionalista”.

Desde meados dos anos 1990, uma nova geração de musicólogos tem contribuído decisivamente para a revisão da figura de Nepomuceno como um mero “precursor” do nacionalismo musical. Trabalhos como os de Luiz Guilherme Goldberg, Avelino Romero Pereira e João Vidal, dentre outros, são paradigmáticos nesse sentido.

É nessa nova leva de estudos que se insere o livro Canto da língua: Alberto Nepomuceno e a invenção da canção brasileira, de Dante Pignatari. Resultado de uma pesquisa de doutoramento defendida em 2009 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), o autor se concentra no estudo das canções de Alberto Nepomuceno. Cabe lembrar que já em 2004 Pignatari publicou Canções para voz e piano (Edusp), de Nepomuceno, primeira edição moderna dessas partituras.

Gênero de destaque no conjunto das obras do artista cearense, que compôs cerca de 70 canções para canto e piano ao longo de toda a sua vida, essas obras refletem de maneira privilegiada as transformações estilísticas do compositor. Ao longo de suas análises, Pignatari procura demonstrar de que maneira Nepomuceno “valeu-se da musicalidade inerente ao idioma para flexionar a linguagem musical europeia e, assim, criar música brasileira”.

O livro está dividido em três partes: a primeira explora as relações entre música e texto desde o Lied romântico, passando pela mélodie francesa até as origens da canção brasileira, com as modinhas do final do século XVIII. Além disso, o autor realiza um estudo sobre a formação artística e intelectual de Nepomuceno, fortemente marcada pelo seu contato com a figura de Tobias Barreto e a Escola de Recife. A segunda parte do livro analisa a primeira canção publicada por Nepomuceno em 1887, bem como aquelas produzidas durante seus anos de estudo na Europa. Chama a atenção a análise de Oraison, sobre texto de Maurice Maeterlinck, que demonstra a modernidade de Nepomuceno, que estava alinhado ao que havia de mais avançado nas vanguardas europeias da época. Como bem ressaltou o compositor Rodolfo Coelho de Souza, “a contribuição efetiva de Nepomuceno foi ter incorporado organicamente à música brasileira as novas linguagens da vanguarda europeia: o abundante cromatismo pós-wagneriano, o gosto francês pelo modalismo exótico, a tonalidade suspensa ultrarromântica, as escalas simétricas de tons inteiros e pentatônicas”.

Por fim, a terceira parte do livro dedica-se à análise minuciosa das canções brasileiras do autor. Com escrita elegante e clara, Pignatari demonstra que o estilo de Nepomuceno se constitui “mediante a incorporação e a mistura de ingredientes muito diversos oriundos da musicalidade da língua portuguesa falada e cantada no Brasil, da música folclórica tradicional, da música popular urbana e das práticas europeias contemporâneas”. Corrigindo as visões tradicionais sobre a música do autor, o livro Canto da língua constitui-se numa importante contribuição aos estudos sobre o compositor Alberto Nepomuceno, mostrando que sua grandeza consiste “em ter fincado as raízes da música brasileira na vanguarda europeia, de um lado, e, de outro, na musicalidade da língua portuguesa”.

Mário Videira é professor de piano, estética musical e história da ópera no Departamento de Música da USP. Publicou o livro O romantismo e o belo musical (Editora Unesp, 2006). É coordenador do Programa de Pós-graduação em Música da ECA-USP.

 

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