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Cultura

No tempo da Delicadeza

Cercada de admiradores e leitores, Lygia Fagundes Telles reafirma sua necessidade essencial de escrever

Lygia: União Brasileira de Escritores a indicou ao Prêmio Nobel de Literatura de 2016

Eduardo Knapp / FolhapressLygia: União Brasileira de Escritores a indicou ao Prêmio Nobel de Literatura de 2016Eduardo Knapp / Folhapress

Generosidade, delicadeza e elegância são traços marcantes da personalidade da escritora Lygia Fagundes Telles. Ganhadora de todos os prêmios literários importantes do Brasil, homenageada nacional e internacionalmente e, este ano, indicada para o Prêmio Nobel de Literatura pela União Brasileira de Escritores, a ocupante da cadeira 16 da Academia Brasileira de Letras (ABL) é dona de indiscutível prestígio intelectual. Cultiva leitores, fascina admiradores e atrai estudiosos para sua obra. Sua característica mais notável, porém, é a necessidade vital de escrever.

“Quando fico desesperada, ao invés de recorrer às pílulas ou aos terapeutas, ou então ao uísque, me entrego ao meu trabalho que é escrever. O que eu sei fazer e amo fazer”, escreveu ela em resposta às perguntas para compor este perfil. Por recomendação médica, Lygia tem evitado entrevistas feitas pessoalmente. A escritora enxerga cada leitor como um parceiro, um cúmplice. “Através do trabalho, espero escapar, ou melhor, me livrar do desespero. Sem atormentar o meu próximo, ofereço a esse próximo um conto, uma crônica, um romance.” Fazendo referência ao livro A negação da morte (Record, 2007), de Ernest Becker, ela pergunta: o que vem a ser a negação dessa morte? “A arte”, responde. “A fé nessa arte. O pianista vai tocar piano, o dançarino vai dançar. E o escritor vai escrever.”

Lygia com o irmão e os pais: família circulou pelo interior paulista dependendo das nomeações do pai, que era promotor

ARQUIVO PESSOAL Lygia com o irmão e os pais: família circulou pelo interior paulista dependendo das nomeações do pai, que era promotorARQUIVO PESSOAL

É por essa razão que, mesmo fragilizada pela idade e por uma fratura no fêmur que a obriga a andar de bengala, Lygia segue escrevendo e vivenciando a literatura, definida por ela como uma forma de amor. Raramente falta aos encontros semanais da Academia Paulista de Letras (APL), no Largo do Arouche, em São Paulo, e cumpre uma agenda de compromissos com a Companhia das Letras, sua editora desde 2009, responsável pelas reedições de seus trabalhos. “Enquanto tiver inspiração, quero continuar apenas escrevendo, obedecendo à minha vocação, em latim, vocare: o chamado”, diz Lygia.

Nascida em 1923, paulistana do bairro de Santa Cecília, a escritora desconhece a vida sem histórias. Quando pequena, morou em várias cidades do interior paulista, seguindo as nomeações do pai, que era promotor e delegado. Nesses municípios, recebia o cuidado de babás dotadas de um farto repertório de lendas. Foram aquelas mulheres que deram à menina imaginativa um sem-fim de histórias povoadas por mulas sem cabeça que ela recontava e reinventava para outras crianças. Lygia gosta de dizer que começou a escrever antes mesmo de saber escrever. Sua predileção, na infância e na primeira juventude, era pelas histórias de terror.

Com Goffredo, filho do primeiro marido, Goffredo da Silva Telles Jr

ARQUIVO PESSOAL Com Goffredo, filho do primeiro marido, Goffredo da Silva Telles JrARQUIVO PESSOAL

São elas que deram o tom a seu livro de estreia, Porão e sobrado (1938), com edição bancada pelo pai. Seis anos depois, lançaria Praia viva. Ambos os trabalhos se encontram hoje inacessíveis. Lygia, sob o argumento de que deseja que conheçam o melhor dela mesma, não quis jamais que fossem reeditados. O início da sua real formação literária coincide com a entrada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), em 1941. “A faculdade foi, para ela, um rito de passagem”, afirma Celso Lafer, professor emérito de direito, ex-presidente da FAPESP e colega da APL e ABL, que a conheceu ainda na faculdade do Largo São Francisco. “Ela é uma grande expressão desse cenário criativo que o ambiente universitário da época tanto estimulou. As memórias daquele período sempre serviram para ela como matéria da ficção.”

Foi durante o curso de direito que Lygia – cuja beleza parava os corredores, segundo relatos de admiradores – conheceu o primeiro marido, o professor Goffredo da Silva Telles Jr. (1915-2009), pai de seu filho, Goffredo Telles Neto (1954-2006). Seu segundo marido foi o intelectual e crítico de cinema Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977). Até hoje, quando fala de Paulo Emilio, Lygia demonstra saudade e paixão. Com ele, adaptou Dom Casmurro, de Machado de Assis, para o cinema; por ele, bateu em muitas portas atrás de recursos para a Cinemateca Brasileira – instituição que o crítico fundou e ela chegou a presidir. A intensa presença do cinema em sua vida prosseguiria, após a morte de Paulo Emilio, por meio do filho. Goffredo, pai das duas netas de Lygia, Lúcia e Margarida, herdou do padrasto a paixão pelas imagens em movimento. Cineasta e videoartista, ele morreu em 2006, aos 52 anos.

Com a bisneta Marina

ARQUIVO PESSOAL Com a bisneta MarinaARQUIVO PESSOAL

Dentre as várias coisas que admiro na Lygia está a forma pela qual ela conseguiu, não superar, porque isso não se supera, mas lidar com a perda do filho, que era tão seu companheiro”, testemunha a escritora Anna Maria Martins, amiga de muitos caminhos cruzados. Em 1973, elas lançaram juntas os livros A trilogia do emparedado, de Anna, e As meninas, de Lygia. Em 1982, Lygia passaria a ocupar, na APL, a cadeira 28, que coubera ao marido de Anna, Luís Martins (1907-1981). Hoje, são também colegas de academia. “Ela é solidária com as pessoas em geral e com os companheiros de trabalho. Sempre deu atenção a todo mundo.” Procurado para falar sobre as características da amiga, o poeta Paulo Bonfim resumiu: “Generosidade e genialidade rimam nesse depoimento”.

Uma das grandes amigas de Lygia foi Clarice Lispector (1920-1977). Ficou famoso o conselho dado por Clarice para que Lygia, de incontornável simpatia, não risse nas fotos a fim de que a levassem a sério. Outra autora com quem teve intimidade foi Hilda Hilst (1930-2004). Nos Cadernos de literatura brasileira, editado pelo Instituto Moreira Salles, a colega de ofício escreveu: “Sempre assusto ela, digo que estou morrendo pra ela aparecer […]. Ela quase não vem aqui. Às vezes até brigo com ela, de ciúmes da Nélida Piñon”. Nélida, nas palavras de Hilda, por ser mais “arrumada”, combinava melhor com a amiga que, sóbria e discreta, “tem pavor de coisas escandalosas”. O ciúme escancarado de Hilda dá a medida da benquerença despertada por Lygia.

Com Paulo Emilio

ARQUIVO PESSOAL E FOTÓGRAFO NÃO IDENTIFICADO / ACERVO LYGIA FAGUNDES TELLES / INSTITUTO MOREIRA SALLES Com Paulo EmilioARQUIVO PESSOAL E FOTÓGRAFO NÃO IDENTIFICADO / ACERVO LYGIA FAGUNDES TELLES / INSTITUTO MOREIRA SALLES

Mesmo habitando um mundo interior denso e complexo, Lygia tem um exterior divertido e prosador. Cabe a José Saramago (1922-2010), num texto escrito para os Cadernos, uma das descrições mais precisas do modo de conversar da escritora. O português relatou um encontro entre vários autores, em Hamburgo, Alemanha, no qual todos escutavam com “terna atenção e respeito” o falar de Lygia: “Aquele seu discorrer que às vezes nos dá a impressão de se perder no caminho, mas que a palavra final irá tornar redondo, completo, imenso de sentido”.

O primeiro grande livro de Lygia é Ciranda de pedra (1954), romance que aborda temas como lesbianismo e suicídio e que foi considerado pelo professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e crítico literário Antonio Candido o marco intelectual da escritora. Outro ponto alto de sua carreira surgiria duas décadas depois: As meninas. O livro, considerado um dos melhores títulos da ficção brasileira do século XX, funde a história do país aos monólogos interiores de três moças – uma delas militante política.

Com Hilda Hilst

ARQUIVO PESSOAL E FOTÓGRAFO NÃO IDENTIFICADO / ACERVO LYGIA FAGUNDES TELLES / INSTITUTO MOREIRA SALLES Com Hilda HilstARQUIVO PESSOAL E FOTÓGRAFO NÃO IDENTIFICADO / ACERVO LYGIA FAGUNDES TELLES / INSTITUTO MOREIRA SALLES

Apesar do reconhecimento pela excelência dos romances, alguns críticos consideram o conto como o gênero de excelência dentro de sua obra. Para Saramago, o conto “Pomba enamorada ou uma história de amor” é uma obra-prima. No “realismo cru, cruel, cruento” dos contos de Lygia, como escreve o crítico Alfredo Bosi no posfácio da reedição de A estrutura da bolha de sabão (1978), “não há saídas nem para o círculo do sujeito fechado em si mesmo nem para o inferno das relações entre os indivíduos”. Tudo, em sua prosa, está submetido à lei da gravidade: “Tudo tem peso, já caiu, ou está prestes a cair”.

A unir toda a escrita de Lygia, seja a narrativa longa ou curta, estão alguns temas: a fuga, a solidão, a loucura e a rejeição. Em suas histórias, a dor está sempre à espreita. E a grande matéria-prima a nutri-las é a memória – ao ponto de a protagonista de As horas nuas (1989) ser uma atriz decadente que tenta escrever um livro de memórias. Em Invenção e memória (2000), livro no qual fragmentos de história pessoal se mesclam à ficção, a epígrafe é uma frase de Paulo Emilio: “Invento, mas invento com a secreta esperança de estar inventando certo”.

Com José Saramago (na outra página): vida social e literária intensa

MONICA VENDRAMINI / FOLHAPRESS Com José Saramago: vida social e literária intensaMONICA VENDRAMINI / FOLHAPRESS

Apesar da escrita que nem sempre se entrega com facilidade ao leitor – o conto “Senhor diretor”, por exemplo, se encerra com dois pontos –, Lygia conhece relativa popularidade e teve obras adaptadas para a TV. Ciranda de pedra virou novela em 1981, trazendo Lucélia Santos no papel principal; em 1993, a série Retrato de mulher, protagonizada por Regina Duarte, levou ao ar uma adaptação da própria Lygia para o conto “O moço do saxofone”. Ela, no entanto, nunca quis escrever para a televisão e não esconde seu espanto com o fato de terem colocado, em Ciranda de Pedra, 10 casamentos. “O livro não traz um sequer”, declarou várias vezes, todas elas rindo.

Bem-humorada, Lygia sabe que a vida não se vive em linha reta. Talvez por isso não siga linhas retas nem no discurso nem no caminhar – permitindo-se sempre os desvios, as voltas. Isso tudo faz com que a fama de distraída se justifique. De distraída e de atrasada. Paulo Emilio a chamava de Cuco, em referência ao relógio da avó inglesa que, assim como Lygia, estaria sempre atrasado. Outra fama colada à sua personalidade é a do apego aos gatos.

“Gosto muito dos gatos, mas não os tenho mais faz anos”, diz, quando perguntada sobre os prazeres que a rodeiam atualmente. “Meus prazeres são meu trabalho, meus amigos, minha família: minhas netas e bisnetas que estão sempre comigo. Uma vida tranquila, com a sensação de que cumpri minha missão.”

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