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Física

O comportamento dos apagões

Modelos matemáticos ajudam a entender como sucessões de falhas causam blecautes em redes elétricas

Podcast: Adilson Motter

 
     
A infância da física Yang Yang foi marcada por apagões. Ela cresceu em Pequim no final dos anos 1990, quando a capital da China sofria com blecautes frequentes. “As usinas não conseguiam suprir a alta demanda por energia elétrica no verão”, conta a pesquisadora chinesa. No ano passado, Yang completou seu doutorado em física teórica sob a orientação do brasileiro Adilson Motter, na Universidade Northwestern, em Evanston, Illinois, nos Estados Unidos. Ela desenvolveu modelos matemáticos que podem ajudar a diminuir o risco de blecautes no sistema elétrico de grandes países como China, Estados Unidos e Brasil.

A partir desses modelos, Yang, Motter e um de seus colegas na Northwestern, o matemático japonês Takashi Nishikawa, identificaram um algoritmo (sequência de procedimentos) que torna possível reconhecer os trechos de uma rede elétrica com maior probabilidade de falhar em série e gerar um efeito em cascata capaz de deixar estados ou até um país no escuro. Esse algoritmo foi descrito em um artigo publicado em janeiro na revista Physical Review Letters.

Por meio de simulações em computador, os pesquisadores testaram o algoritmo considerando a rede de distribuição elétrica do Texas, uma das maiores dos Estados Unidos. Além de reproduzir com sucesso o histórico de apagões ocorridos entre 2010 e 2013, eles estimaram o risco de a rede texana sofrer blecautes de diferentes proporções. “São previsões que os engenheiros poderão testar e usar para orientar intervenções destinadas a evitar apagões na rede”, diz Motter.

O algoritmo foi desenvolvido como parte de um projeto de pesquisa maior, coordenado por Motter e Nishikawa e financiado com US$ 3,2 milhões pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos. Nele, os físicos colaboram com engenheiros eletricistas e outros profissionais de instituições de pesquisa e companhias de energia para criar sistemas de controle que atendam a nova realidade do setor elétrico norte-americano.

“A rede brasileira é centralizada, com poucas e grandes usinas hidrelétricas”, explica Motter. “Já a dos Estados Unidos funciona com milhares de usinas espalhadas pelo país, a maioria termelétrica e nuclear, e está incorporando cada vez mais fontes de energia renovável, principalmente a solar e a eólica.” Segundo o físico, o problema com essas duas fontes alternativas é que elas produzem energia de modo intermitente, uma vez que os painéis solares não geram eletricidade à noite ou quando o Sol está encoberto e as turbinas eólicas não funcionam na ausência de vento. Essa intermitência, afirma Motter, aumenta a probabilidade de as falhas na rede elétrica serem amplificadas e provocarem blecautes.

Imagens de satélite mostram, em branco, a iluminação de cidades do Nordeste norte-americano em 13 de agosto de 2003..

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Por mais bem equipada e planejada que seja, nenhuma rede de geração e distribuição de energia elétrica está livre do risco de um grande apagão. O perigo é maior no verão, quando o calor aumenta a demanda por energia para alimentar aparelhos de ar-condicionado. Ao mesmo tempo, os extremos climáticos típicos da estação, como secas e tempestades, aumentam a probabilidade de ocorrência de incêndios e queda de raios, que podem desligar geradores de eletricidade e desconectar as linhas de transmissão.

Mais do que inconvenientes, os apagões causam sérios prejuízos econômicos. Estima-se que os Estados Unidos percam dezenas de bilhões de dólares por ano com a interrupção de atividades industriais e de serviços em decorrência de blecautes. O Brasil enfrenta o mesmo problema. Um levantamento do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE) concluiu que, entre 2011 e 2014, houve 181 apagões em diversas regiões do país.

“Grandes apagões são raros, mas pequenos blecautes acontecem o tempo todo”, conta Motter, que se graduou em física na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Desde 2006 ele trabalha na Northwestern como especialista na dinâmica de redes complexas, área da matemática que estuda o funcionamento de sistemas formados por muitos componentes interligados, como as redes de neurônios no cérebro ou as redes formadas por usinas, linhas de transmissão e de distribuição de energia. Em sistemas tão complexos, a falha de um componente induz outros a falharem em seguida.

“Quando uma linha de transmissão é interrompida, as linhas paralelas podem sofrer sobrecarga e desligar automaticamente para evitar estragos permanentes no sistema”, diz Motter. Algumas dessas cascatas de falhas causam blecautes em pequenas partes da rede, enquanto outras ganham grandes proporções. “Tentamos entender como essas cascatas se propagam e o que determina o tamanho delas”, conta o físico.

Nos Estados Unidos, o maior e mais recente apagão em escala nacional aconteceu em 14 de agosto de 2003 e afetou grandes porções do Nordeste e do Meio-Oeste norte-americano, além da província de Ontário, no Canadá. Começou com a falha inicial de três linhas de transmissão no estado de Ohio e, em menos de uma hora, 255 usinas foram desligadas. No início, as unidades deixaram de funcionar pouco a pouco, mas, nos dois minutos finais dessa hora, a maior parte apagou quase simultaneamente.

...e no blecaute do dia 14

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Um dos maiores apagões do Brasil, o de 10 de novembro de 2009, começou com uma falha em uma subestação em Itaberá, interior de São Paulo. O problema desencadeou uma cascata que levou ao desligamento da hidrelétrica de Itaipu e afetou estados inteiros do Sudeste e do Centro-Oeste, além do Paraguai. “Houve um efeito de amplificação”, diz Motter. “A desconexão de Itaipu, que produzia 20% da energia elétrica do país, induziu outras partes da rede, indiretamente ligadas à usina, a também se desconectarem, e o blecaute afetou cerca de 40% da demanda no território nacional.”

Espinha dorsal
Estimar a probabilidade de grandes apagões como esses voltarem a acontecer é difícil porque são eventos relativamente raros. Os dados históricos de uma rede elétrica não são suficientes para que físicos possam aplicar análises estatísticas a eventos extremos. No estudo da rede elétrica do Texas, Motter e seus colegas tentaram contornar o problema criando em computador um modelo de rede o mais realista possível.

Cada simulação começava reproduzindo uma situação real de suprimento e demanda de energia, bem como da capacidade de transmissão que as linhas da rede texana experimentaram nos horários de pico entre 2010 e 2013. A partir dessas situações reais, os pesquisadores simulavam blecautes imaginários ao provocar ao acaso a pane de alguns elementos da rede virtual. Depois eles registravam o tamanho da área afetada pela cascata de falhas induzida pelas panes.

Os dados de 120 mil blecautes virtuais revelaram algo surpreendente. Os físicos notaram que, muitas vezes, a falha de um elemento da rede pode poupar os elementos vizinhos e induzir falha em outros mais distantes. Grupos de dezenas de elementos sem ligação direta entre si tendiam a falhar em conjunto em um grande blecaute. Os pesquisadores perceberam ainda que a dimensão dos apagões dependia mais das conexões entre os elementos de um grupo e do tamanho desse grupo do que do tamanho e das ligações da rede elétrica como um todo.

“Vários fatores poderiam afetar o tamanho das cascatas de falhas”, conta Motter. “Nosso trabalho identificou dois determinantes.” Um é a probabilidade de cada elemento da rede falhar sozinho. O outro é o risco de dois ou mais elementos falharem juntos em uma mesma cascata.

Mapa da rede elétrica dos EUA permite identificar os pontos mais conectados

Takashi nishikawa / universidade northwestern Mapa da rede elétrica dos EUA permite identificar os pontos mais conectadosTakashi nishikawa / universidade northwestern

Identificar esses dois fatores permitiu aos pesquisadores criar um modelo mais simples para prever blecautes na rede texana do que o obtido a partir da simulação realista usada inicialmente. “Esses subgrupos de elementos mais vulneráveis formam a espinha dorsal das cascatas”, comenta o engenheiro Elbert Macau, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos, São Paulo. Ele coordena um projeto de pesquisa em redes complexas financiado pela FAPESP e publicou recentemente um estudo sobre o problema dos apagões. “O grupo de Motter chegou a um método muito criativo de simplificar os cálculos necessários para estimar a probabilidade de ocorrerem as cascatas de falhas possíveis em uma rede complexa”, afirma Macau. “Sem essa simplificação, seria impraticável calcular isso para uma rede elétrica nacional.”

Enquanto a equipe de Motter modelou como uma cascata de falhas se propaga pela rede elétrica, Macau e seus colegas tentaram entender melhor uma das principais causas dessas falhas: a falta de sincronia entre a demanda e a oferta de energia. Em novembro de 2016, o grupo do Inpe, com pesquisadores do Instituto Tecnológico de Aeronáutica e da Universidade Federal da Fronteira Sul, publicou um artigo na revista Chaos no qual introduz um modelo matemático que enfoca essa questão. Com esse modelo, os pesquisadores conseguem determinar as condições de equilíbrio estável em que um sistema de distribuição elétrica pode funcionar de forma a manter a sincronia entre a geração de energia e a demanda dos consumidores mesmo diante de perturbações, reduzindo, assim, o risco de apagões. O modelo foi aplicado ao sistema brasileiro de distribuição de eletricidade para determinar sua tolerância a perturbações específicas.

Outro trabalho que contou com a participação de brasileiros foi um passo além e propôs formas de reestabelecer rapidamente a sincronia em uma rede elétrica. Dois meses antes, em outro artigo na mesma revista, o estudante de doutorado chinês Chengwei Wang e os físicos brasileiros Celso Grebogi e Murilo Baptista, todos da Universidade de Aberdeen, no Reino Unido, mostraram que a aplicação de perturbações elétricas, calculadas a partir de informação parcial do consumo e da geração de energia, pode evitar o surgimento das grandes assincronias que levam aos apagões. “Criamos um sistema confiável, no qual há um permanente equilíbrio entre geração e demanda”, diz Grebogi. “O controle proposto possibilita a construção de redes elétricas inteligentes, as smart grids.”

O engenheiro eletricista Antônio Padilha Feltrin, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Ilha Solteira, considera o modelo proposto por Motter para identificar os grupos de elementos de rede que tendem a falhar em conjunto uma novidade interessante, mas faz uma ressalva. “Obter as informações iniciais para calcular as probabilidades é algo muito complicado para o setor elétrico”, diz. Feltrin explica que a rede está constantemente sendo alterada por meio de melhorias e manutenções, o que pode modificar drasticamente a probabilidade de um elemento da rede falhar de um momento para outro.

Ele lembra, por exemplo, que após o blecaute de 1999 no Brasil, um novo sistema de comunicação foi implantado entre as principais usinas do país. “A rede elétrica mudou de modo que uma falha como a que aconteceu naquele ano não pode mais acontecer da mesma forma”, afirma. Ainda assim, para Feltrin, o modelo do grupo de Motter tem potencial de ajudar a prevenir apagões se a rede dispuser de um sistema de informações ágil e eficiente que permita conhecer suas condições de operação em tempo real, característica principal da nova geração de redes elétricas que estão sendo criadas nos Estados Unidos, as redes inteligentes.

Artigos científicos
YANG, Y., NISHIKAWA, T. e MOTTER, A. E. Vulnerability and co-susceptibility determine the size of network cascades. Physical Review Letters. 27 jan. 2017.
GRZYBOWSKI, J. M. V., MACAU, E. E. N. e YONEYAMA, T. On synchronization in power-grids modelled as networks of second-order Kuramoto oscillators. Chaos. nov. 2016.
WANG, C., GREBOGI, C. e BAPTISTA, M. S. Control and prediction for blackouts caused by frequency collapse in smart grids. Chaos. set. 2016.

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