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Justiça

Labirinto das decisões inconclusas

Oitenta e seis por cento das deliberações do STF são respostas a recursos internos ao tribunal

Pedro Ladeira / FolhapressBasta acompanhar o noticiário para perceber que o Supremo Tribunal Federal (STF) ocupa hoje uma posição central nas principais discussões do país. Nos últimos anos, as decisões do tribunal no campo político são de grande repercussão, mas sua atuação tem alcance bem mais vasto. Criada com a construção do arcabouço legal da República, a corte tem como finalidade principal a verificação da constitucionalidade das leis e, na prática, como instância máxima do poder Judiciário, a última palavra sobre todos os assuntos que considerar relevantes para o país. Por ter prerrogativas amplas, o Supremo sofre um afluxo de demandas que desafia sua capacidade de decidir. Em 2016, chegaram ao STF 90.713 processos novos. Mesmo tendo sido concluídos 80.297 durante o período, restou um acúmulo de casos não encerrados em torno de 60 mil, número que vem se mantendo estável nos últimos anos.

Apesar do esforço dos 11 ministros do STF, a palavra final sobre a constitucionalidade é relativamente rara: 86% das decisões são de natureza processual, ou seja, respostas a recursos internos ao tribunal pedidos por advogados das partes em litígio. “Não se decide a constitucionalidade das demandas, mas sim etapas e prazos”, analisa Joaquim Falcão, diretor da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro e ex-integrante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle e aperfeiçoamento do poder Judiciário hierarquicamente inferior ao STF. “O Supremo inunda-se de decisões inconclusas e transformou-se em seu próprio labirinto, com imensos custos econômicos e políticos para o Brasil”, afirma.

Para Falcão, tão importantes quanto as decisões do tribunal são as não decisões, porque delas também decorrem situações “de fato” – entre outras consequências, pode acontecer de os processos prescreverem, favorecendo um dos lados. Um exemplo levantado por Falcão, no estudo “O Supremo, a incerteza judicial e a insegurança jurídica”, publicado na versão em português do Journal of Democracy, são as ações que questionam a constitucionalidade de planos econômicos. “Estima-se que mais de 957 mil casos permaneçam parados nas instâncias inferiores, aguardando uma decisão do Supremo que pode impactar o setor bancário em mais de R$ 2,5 bilhões”, conta o pesquisador. “Essa não decisão afeta o princípio de separação dos poderes e, ao proteger o Tesouro entre as partes envolvidas, torna-se uma verdadeira política econômica do Supremo.”

“Os planos econômicos se beneficiaram muito mais do silêncio dos ministros do Supremo do que de decisões que chancelassem seu mérito”, observa Diego Werneck Arguelhes, professor da FGV Direito-Rio. “Pode-se argumentar que esse silêncio foi administrado com a responsabilidade de não tomar decisões que provocassem grande impac-to político, mas há uma grande obscuridade no estabelecimento das pautas, o que costuma emperrar o funcionamento do tribunal.” Segundo ele, “nunca se tem certeza sobre o que o Supremo vai julgar até o momento em que o julgamento começa, mesmo que a pauta seja publicada com antecedência”. O fator tempo desorganiza a pauta, e o presidente não é obrigado a dar satisfações sobre a retomada de processos. A pauta raramente é esgotada numa sessão e não necessariamente a lista prossegue, na sessão seguinte, como previsto anteriormente.

Em seu artigo, Falcão distingue um estado de incerteza natural, provocado pela expectativa de decisões da Justiça, da insegurança decorrente da ausência ou do descumprimento de regras pelo Supremo. Um exemplo são os pedidos de vista, estudados por Arguelhes e Ivar Hartman, seu colega na FGV Direito-Rio. Por meio desse instrumento, os ministros individualmente podem pedir tempo para estudar melhor um processo e, enquanto isso, paralisá-lo. O regimento interno do tribunal estabelece um prazo de 10 dias, prorrogáveis por mais 10, para a devolução, mas há casos de processos não devolvidos há mais de cinco anos. Falcão define essa rotina geral como “patológica”, por alargar desnecessariamente a “razoável duração do processo” prevista no artigo 5º da Constituição. “Diante de seu labirinto recursal, o STF elimina umas incertezas e cria outras, em um moto-contínuo.”

As conclusões do pesquisador são baseadas em dados quantitativos dos projetos “Supremo em números” e “História oral do Supremo”, ambos da FGV Direito-Rio, e do projeto “Justiça em números”, do CNJ, todos disponíveis on-line. Segundo ele, as quantificações e o cruzamento de dados extraídos por meio de softwares desenvolvidos no “Supremo em números” revelam a situação de paralisia de centenas de processos.

O grupo coordenado por Falcão defende que os estudos sobre o Judiciário não se limitem apenas à doutrina, mas considerem também as implicações sociológicas, econômicas e culturais das decisões oriundas da Justiça. Um exemplo do desconhecimento da realidade do Supremo foi a previsão, no texto do novo Código de Processo Civil, enviado para sanção presidencial há dois anos, de conceder 15 minutos a cada uma das partes para apresentar seus argumentos nos julgamentos de agravos (recurso que se pode interpor contra uma decisão) no STF. De acordo com o “Supremo em números”, chegam à corte, em média, 9.402 agravos por ano – portanto, se apenas uma das partes utilizasse seus 15 minutos, seriam consumidas 2.350 horas anuais. Alertada, a então presidente Dilma Rousseff vetou a regra.

Com a Constituição de 1988, o STF passou a desfrutar de um poder sem precedentes, que lhe dá, se houver demanda e seus ministros considerarem necessário, a palavra final em relação à atuação do Executivo, do Legislativo e das instâncias inferiores do Judiciário. A Carta abriu um grande número de vias de acesso processual ao STF: 36, entre ações de constitucionalidade, agravos e recursos. As atribuições do tribunal podem ser amplas a ponto de, recentemente, ter julgado e derrubado o último recurso de contestação do resultado do Campeonato Brasileiro de Futebol de 1987. Diante da profusão de demandas, prevalecem as decisões monocráticas (proferidas por um único magistrado): 93% por ano, em média. O fenômeno, ressaltam os pesquisadores, constitui uma distorção da natureza colegiada do STF e por isso atenta contra o direito das partes em litígio. Além disso, quando um ministro profere uma decisão liminar, paralisa o processo e o mantém a salvo de uma decisão definitiva do plenário.

O alcance abrangente do Poder Judiciário no Brasil, por meio do STF, seria uma forma de sobrepor-se aos demais poderes, afetando o equilíbrio democrático entre eles? Não em princípio, embora esse equilíbrio seja delicado. “O Supremo tem uma importância decisiva, mas é próprio da dinâmica da separação de poderes que os limites sejam permanentemente tensionados”, afirma Rogério Arantes, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP). “Mas o STF tem que ser comedido em suas decisões, sob o risco de vê-las desacatadas. É só lembrar o episódio em que o senador Renan Calheiros recusou-se a receber a ordem de afastamento da presidência do Senado, no ano passado, e o tribunal a refez em poucos dias, para torná-la exequível.”

No entanto, analisa Oscar Vilhena Vieira, diretor da Faculdade de Direito da FGV em São Paulo, por termos uma Constituição “ambiciosa”, todas as mudanças legislativas e adoções de políticas públicas ganham dimensão constitucional. “O Supremo é chamado a dar a última palavra em temas que deveriam ser incumbência do campo político”, afirma. Os demais poderes delegam ao Judiciário o ônus das decisões mais polêmicas. Vilhena dá os exemplos da união civil de casais homossexuais, das greves do funcionalismo público e da guerra tributária entre os estados.

Falcão aponta uma “cultura de processualismo” que não foi abalada por tentativas de diminuir as demandas ao STF, como a Emenda 45, aprovada pelo Congresso em 2004 e adotada pelo tribunal em 2007, que criou os institutos da repercussão geral (que permite priorizar processos de acordo com sua importância social) e da súmula vinculante (pela qual uma decisão prévia estabelece jurisprudência para demandas posteriores). Contudo, ainda que nos primeiros anos de vigência a repercussão geral tenha surtido efeito na diminuição do estoque de ações a decidir, esse resultado foi efêmero. “A repercussão geral cria novas reações internas e mais recursos, regras e procedimentos que consomem tempo”, alerta Arguelhes. “Se o STF fosse fiel aos precedentes que estabelece, nem seria necessário o instrumento da repercussão geral”, diz Damares Medina, professora do Instituto Brasiliense de Direito Público e coordenadora de pesquisa do Instituto Constituição Aberta (Icons). “Até mesmo os casos julgados em repercussão geral são rejulgados pelo tribunal, que, por hábito, sempre vê um motivo para isso.”

“O Congresso tentou diminuir as demandas, mas a gestão de processualismo do Supremo não permitiu”, constata Falcão. Há, segundo ele, uma resistência histórica a limitar o número de processos que chegam ao STF. Isso deriva de uma “importação seletiva” do judicial review – o controle judicial das leis de acordo com as demandas da sociedade, princípio que orienta a Suprema Corte dos Estados Unidos e inspirou a criação do STF pela Constituição de 1891. Para o pesquisador, faltou acompanhar o desenvolvimento, ao longo do direito constitucional dos Estados Unidos, do mecanismo writ of certionari, a prerrogativa de aceitar ou não, sem necessidade de justificativa, as ações que chegam à Suprema Corte. No Brasil, não há previsão estatutária nem a tradição de devolver processos. Há uma hibridez de natureza do STF que o torna ao mesmo tempo guardião da constitucionalidade, tribunal de terceira instância – na maioria dos países bastam duas – e, nos casos de julgamento de políticos com foro privilegiado, tribunal penal de primeira instância.

Razões históricas
Falcão aponta razões históricas para a resistência em usar a jurisprudência para criar filtros. Segundo ele, o STF foi importante em períodos de autoritarismo na defesa das liberdades civis e apegou-se ao papel de coibir abusos cometidos por outras esferas de poder: “A competência penal do STF, por exemplo, é influenciada por essa necessidade”. Outro fator para a baixa frequência de recusas a julgar casos seria “uma concepção equivocada, mas culturalmente sedimentada, de que a reiteração do Estado de Direito por constantes decisões aperfeiçoa o sentimento de justiça na sociedade”.

Damares Medina chama a atenção para a falta de padrões consistentes de reprodução da jurisprudência do Supremo. Para a pesquisadora, esse traço característico do comportamento decisório do tribunal estimula novos acessos e novos julgamentos de teses já decididas. “A partir da análise da jurisprudência do Supremo, observamos que um dos efeitos deletérios da inconsistência dos padrões de reprodução das decisões do tribunal é o efeito multiplicador de reabertura de demandas em cascata, nos tribunais de origem (jurisprudência de base)”, afirma.

Para a pesquisadora, o Judiciário se tornou um fim em si próprio. “No Brasil, há quase 130 milhões de processos, mais de 451 mil funcionários e um orçamento que equivale a 1,34% do Produto Interno Bruto [PIB], enquanto nos Estados Unidos, Alemanha e Espanha essa fração não passa de 0,30%”, informa. Um fator que contribui para o inchaço, lembram Arguelhes e Medina, é que no Brasil é relativamente barato recorrer à Justiça e, portanto, levar as questões até a última instância. Nos casos de foro privilegiado, lembra Falcão, os processos chegam a se arrastar até 11 anos. De acordo com levantamento do “Supremo em números”, de janeiro de 2011 a março de 2016, apenas 5,8% das decisões em inquérito no STF resultaram em ações penais e o índice de condenação dos réus foi inferior a 1%. “Por isso os congressistas ainda resistem a abrir mão do foro privilegiado”, diz Falcão. “Em todas as áreas de atuação do STF, a maior probabilidade estatística é da protelação.”

A situação não escapa aos membros do STF, que estão discutindo propostas de mudanças, mas, segundo os pesquisadores, há um apego renitente a todas as atribuições atuais. “Desestimular a litigância, diminuir o número de processos, descentralizar para as instâncias inferiores a ‘palavra final’, controlar o comportamento dos ministros, tornar o processo decisório previsível, tudo impacta e diminui o poder do Supremo”, afirma Falcão. “É um poder paralelo e informal não previsto na Constituição.”

Artigos científicos
ARGUELHES, D. W. e HARTMAN, I. A. Timing control without docket control: How individual Justices shape the Brazilian Supreme Court’s agenda. Journal of Law and Courts. v. 5, n. 1. 2017.
FALCÃO, J. O Supremo, a incerteza judicial e a insegurança jurídica. Journal of Democracy em Português. v. 5. 2. 2016.

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