Imprimir PDF Republicar

Memória

Para formar homens de leis

Criadas há 190 anos, faculdades de direito de São Paulo e Recife contribuíram para a construção da identidade nacional após a Independência

Jean Georges Renouleau / Wikicommons Fachada do convento franciscano do século XVII onde foi instalada a Academia de Direito de São Paulo, em 1827Jean Georges Renouleau / Wikicommons

Os anos seguintes à proclamação da Independência, em 7 de setembro de 1822, foram marcados por agitações políticas e intensas negociações sobre a criação da nação brasileira e a definição de um perfil de Estado nacional. Era preciso investir na formação de uma elite intelectual capaz de gerir a pátria recém-emancipada, instituindo-lhe uma identidade própria, em oposição à portuguesa. Mais do que novas leis, o país precisava de uma consciência jurídica, que deveria emanar de cursos estabelecidos em território nacional. Foram esses e outros argumentos que deram o tom das discussões políticas que culminaram na criação das primeiras faculdades de direito do Brasil, em São Paulo e Recife, em agosto de 1827.

As articulações políticas que contribuíram para a criação dessas instituições tiveram início durante os debates travados na primeira Assembleia Nacional Constituinte do Brasil. Convocada em maio de 1823, a Assembleia representou um passo fundamental no processo de consolidação da independência política e econômica do país. Cabia aos deputados a tarefa de estruturar as bases políticas e institucionais do Brasil e, assim, inaugurar juridicamente o regime constitucional.

A proposta de criação de um curso de direito foi apresentada na sessão de 14 de junho de 1823 pelo advogado José Feliciano Fernandes Pinheiro, o visconde de São Leopoldo (1774-1847). Tratava-se de um pedido de brasileiros matriculados na Universidade de Coimbra, em Portugal, onde estudava a maioria dos que pretendiam seguir nas profissões jurídicas, inclusive os próprios parlamentares. O projeto apresentado por Fernandes Pinheiro foi encaminhado para debate na Assembleia, e logo iniciaram as divergências sobre a localização dos cursos jurídicos. Os debates transcorreram de forma apaixonada. “Os parlamentares advogavam em favor de suas províncias de origem, já que desses cursos sairia a futura elite política do país”, comenta a advogada e historiadora Bistra Stefanova Apostolova, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB).

Wikicommons Sede da Faculdade de Direito de Olinda, antes de sua transferência para Recife, em 1854Wikicommons

Bistra estudou a criação das primeiras academias de direito no Brasil em seu doutorado, analisando os discursos dos parlamentares registrados em anais da Assembleia Constituinte de 1823 e da Assembleia Geral, instituída em 1826. Segundo ela, durante as discussões, muitos parlamentares saíram em defesa do Rio de Janeiro, onde estava a capital, inclusive Pedro I, primeiro imperador do Brasil (1822-1931). Outros defendiam que o curso fosse aberto em São Paulo. “Próximo ao porto de Santos, tem baratos víveres, clima saudável e moderado, é muito abastecida de gêneros de primeira necessidade e os habitantes das províncias do Sul e do interior de Minas podem ali dirigir os seus jovens filhos com comodidade”, destacou o deputado baiano Luís José de Carvalho e Melo (1764-1826) na sessão de 19 de agosto 1823.

O projeto foi sancionado pela Assembleia Constituinte em 4 de novembro de 1823. Determinava a criação de duas faculdades de direito, uma em São Paulo e outra em Olinda, Pernambuco. O texto, no entanto, não foi convertido em lei, assim como muitos outros projetos debatidos e aprovados pelos deputados constituintes. À medida que os trabalhos avançavam, os parlamentares ganhavam força política diante do poder Executivo. Sentindo-se ameaçado, na madrugada de 12 de novembro, em um episódio que ficou conhecido como “Noite da agonia”, Pedro I fez a balança pender para o seu lado, resolvendo momentaneamente as disputas entre os poderes. Com o apoio do Exército, cercou o Paço da Câmara e ordenou que o brigadeiro José Manuel de Morais entregasse ao presidente do Senado o decreto dissolvendo a Assembleia Constituinte.

Acervo da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Prédio construído para abrigar o curso paulista, no Largo São Francisco, região central da cidadeAcervo da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

A questão das escolas de direito só foi retomada em maio de 1826, na Assembleia Geral Legislativa. “A memória do projeto de criação das faculdades de direito mantinha-se viva entre as elites políticas”, comenta Bistra. Foi o deputado mineiro Lúcio Soares Teixeira de Gouveia (1792-1838) quem propôs a retomada do assunto com base no projeto de lei já aprovado pela primeira Constituinte.

O texto foi discutido e recebeu várias emendas. Por fim, em 1827, decidiu-se mais uma vez por São Paulo e Olinda.“A criação de escolas de direito nas regiões Sul e Norte, como se dizia na época, pretendia integrar as diferentes regiões do país, fortalecendo a unidade territorial”, explica a advogada e historiadora Ana Paula Araújo de Holanda, da Universidade de Fortaleza, Ceará, que estudou as articulações políticas que contribuíram para a criação dos primeiros cursos de direito do Brasil. O projeto aprovado na Assembleia Geral, no entanto, não rompeu totalmente com a tradição jurídica portuguesa. Houve alguns desencontros entre as intenções dos parlamentares e a prática, segundo Bistra. Adotam-se provisoriamente os Estatutos da Universidade de Coimbra.

A chamada Academia de Direito de São Paulo foi instalada em um convento franciscano do século XVII na região da cidade hoje conhecida como Largo São Francisco – somente em 1936 a faculdade foi transferida para o prédio atual, ao lado do mosteiro, de arquitetura neocolonial, projetado pelo arquiteto português Ricardo Severo da Fonseca e Costa (1869-1940). Dois anos antes, a faculdade havia sido uma das unidades fundadoras da Universidade de São Paulo (USP). Por determinação de Pedro I, foi nomeado como seu primeiro diretor o tenente-general José Arouche de Toledo Rendon (1827-1833), doutor em leis e armas. As matrículas para a primeira turma foram abertas em março de 1828, com 33 estudantes, entre os quais José Antonio Pimenta Bueno, o marquês de São Vicente (1803-1878), um dos principais líderes do movimento abolicionista que levou à libertação dos escravos em 1888.

Acervo Fundação Joaquim Nabuco Edifício do Centro de Ciências Jurídicas da UFPEAcervo Fundação Joaquim Nabuco

Já o curso de Olinda foi instalado em um salão no mosteiro de São Bento, sob direção do político e jurista Pedro de Araújo Lima (1793-1870), e transferido para Recife em 1854 – desde 1946  está incorporado à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Em seu discurso inaugural, o desembargador Lourenço José Ribeiro, diretor interino do curso, destacou a importância social do curso jurídico para o progresso do país e da província em que fora instalado, as facilidades que traria àqueles que desejassem seguir nas profissões jurídicas, sem mais haver a necessidade de se deslocarem para a Europa. As aulas começaram em junho de 1828. Ao todo, 41 estudantes haviam sido admitidos.

Ambas as faculdades, além de serem os únicos centros de formação jurídica do país, tornaram-se importantes polos inspiradores das artes literárias e poéticas, contribuindo para a construção da identidade nacional. As instituições também foram importantes para os principais momentos cívicos, literários e políticos que se seguiram ao longo das décadas no país, como os que levaram à proclamação da República, em 1889, à Abolição, um ano antes, e às Diretas Já, em 1983.

Republicar