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história

A saúde entre dois mundos

Africanos e seus descendentes atuavam como sangradores e parteiras, funções essenciais para a sociedade brasileira no século XIX

Podcast: Tânia Salgado Pimenta

 
     
No Rio de Janeiro do século XIX, os médicos, cirurgiões e boticários eram em sua maioria brancos e pertenciam a classes sociais mais abonadas. Já os sangradores, curandeiros, parteiras e amas de leite eram quase sempre escravos, libertos e pessoas livres empobrecidas, entre elas imigrantes e africanos livres. Era essa população desfavorecida que tratava dos problemas de saúde mais urgentes de quem precisava, não importava se ricos ou pobres. Os sangradores ofereciam seus serviços pelas ruas e praças das cidades e em lojas de barbeiros, enquanto as parteiras trabalhavam em ambientes domésticos, cuidando de questões relacionadas não apenas ao parto, mas também a abortos e doenças genitais.

Entre 1808 e 1828, a Fisicatura-mor, órgão criado pelo governo central e sediado no Rio de Janeiro, naquela época a capital do Império, fiscalizava e regulamentava as “artes de cura”, incluindo tanto as atividades praticadas por médicos como aquelas desenvolvidas por pessoas sem formação acadêmica. O órgão estabelecia que os médicos deveriam diagnosticar e tratar de doenças internas do corpo, enquanto cirurgiões se ocupavam de moléstias externas. Já os boticários manipulavam os medicamentos receitados por médicos e cirurgiões. “Oficialmente, sangradores e parteiras deveriam lidar com casos simples de doença e fazer apenas o que médicos ou cirurgiões mandassem. Porém, a população recorria a eles porque partilhava de suas concepções de doença e saúde”, observa a historiadora Tânia Salgado Pimenta, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz e professora do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (COC/Fiocruz).

O cenário acima é descrito em Escravidão, doenças e práticas de cura no Brasil (Outras Letras, 2016), organizado por Tânia Pimenta e o historiador Flávio Gomes, do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No livro, eles apresentam os resultados do projeto de pesquisa realizado na Fiocruz entre 2013 e 2016, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da própria Fiocruz. Os estudos indicam que ofícios centrais à saúde da sociedade brasileira naquele momento eram desempenhados por escravos e libertos, numa época em que a medicina acadêmica disputava espaço com as práticas populares de cura.

Arquivo Nacional, fundo Fisicatura-Mor, caixa 466, pacote 1 Licença concedida pela Fisicatura-mor em 1817 para que o curandeiro Bento possa atuar na região de Inhaúma durante o período de um anoArquivo Nacional, fundo Fisicatura-Mor, caixa 466, pacote 1

Em relação à sangria, Tânia Pimenta esclarece que, desde Hipócrates (460 a.C. a 370 a.C.), a medicina acadêmica concebia que o corpo humano era formado por quatro “humores”: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra provenientes, respectivamente, do coração, sistema respiratório, fígado e baço. De acordo com ela, sobretudo a partir de Galeno (século II), os médicos acreditavam que o desequilíbrio entre esses elementos em partes do corpo poderia ser combatido através da sangria, assim como por meio de remédios que fizessem o indivíduo vomitar, evacuar ou urinar. Por isso, a sangria servia para tratar doenças como cólera, além de febres, tosses e constipações, também consideradas enfermidades naquela época. “Eram os terapeutas populares e não os médicos que se ocupavam dessa atividade, considerada inferior por causa da necessidade de tocar o corpo do paciente e mexer com sangue”, afirma Tânia. De acordo com ela, muitos dos sangradores também atuavam como barbeiros, aproveitando seus instrumentos de corte tanto para fazer incisões como para cortar o cabelo e a barba de homens. Se fossem escravos, os sangradores faziam arranjos com seus senhores, dando-lhes parte dos rendimentos obtidos com a atividade. Tânia relata que, no decorrer do século XIX, estudantes das duas primeiras faculdades de medicina criadas no Brasil em 1832, em Salvador e no Rio de Janeiro, passaram a assumir essa tarefa, desqualificando o trabalho da população afrodescendente.

“A partir das descobertas do francês Louis Pasteur em microbiologia e do desenvolvimento da medicina microbiana, a sangria deixou aos poucos de ser recomendada”, esclarece Tânia. Ela detalha que no século XIX a medicina não tinha a mesma credibilidade que tem hoje entre a população brasileira, reputação que se relaciona com sua institucionalização no país. Esse processo, que se consolidou apenas no século XX, começou na primeira metade do XIX com a criação das faculdades de medicina do Rio e da Bahia, de periódicos médicos especializados a partir do final da década de 1820 e da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro em 1829, transformada em Academia Imperial de Medicina em 1835.

O historiador Rodrigo Aragão Dantas, doutorando na Fiocruz, explica que, no começo do século XIX, para atuar como sangrador ou parteira era preciso ter um registro na Fisicatura-mor, possibilidade que foi extinta em 1828, quando a responsabilidade pelos serviços de saúde pública passou às câmaras municipais. De acordo com ele, nesse momento, os sangradores deixaram de obter o registro oficial para trabalhar e passaram a atuar clandestinamente. Mesmo assim, não perderam a credibilidade com a população.

Maternidade mercenária
A população de escravos e libertos também desempenhava um papel central na sobrevivência dos recém-nascidos das classes médias e abastadas. As mulheres brancas não costumavam amamentar seus bebês. A atividade era vista como trabalho e, por essa razão, elas recorriam ao leite de mulheres negras que tinham acabado de parir, fossem escravas de sua propriedade, alugadas de terceiros ou mesmo libertas. “Naquela época, um recém-nascido que não contasse com leite materno dificilmente sobrevivia, tanto nas classes senhoriais como entre famílias empobrecidas”, observa Maria Helena Pereira Toledo Machado, professora no Departamento de História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Ela conta que os norte-americanos Charles Windship e Elijah Pratt inventaram as mamadeiras entre 1841 e 1845, enquanto a descoberta do processo de pasteurização e esterilização do leite data de 1859 e 1886, respectivamente. Em 1867, foi criada a primeira fábrica de fórmulas de leite em pó na Europa. “Aos poucos, esses eventos tornaram a alimentação artificial de recém-nascidos mais segura. No Brasil, já apareciam alguns anúncios de leite em pó para bebês na década de 1870, mas os produtos circulavam pouco porque eram importados, caros e havia pouco estoque”, esclarece Maria Helena. Por causa disso, na segunda metade do século XIX, no Brasil, a preferência ainda era pelas amas de leite.

Mãe preta, de Lucílio de Albuquerque / wikimedia commons Ama de leite amamenta recém-nascido branco, com seu próprio filho ao lado: bebês negros não aparecem nas imagens da épocaMãe preta, de Lucílio de Albuquerque / wikimedia commons

Apesar de a prática existir em outros países onde a escravidão vigorou, Maria Helena considera que ela ocorreu de maneira mais intensa no Brasil. “Nos Estados Unidos, fazendeiras sulistas chegavam a recorrer a escravas que haviam dado à luz na mesma época para se revezar na amamentação do recém-nascido”, compara. Aqui, em mais de 90% dos anúncios de jornais do período, as amas de leite escravas eram anunciadas sem os próprios filhos. O valor dessas mulheres era três vezes mais alto do que quando elas eram oferecidas para aluguel com a própria prole. “Pouco sabemos sobre os destinos dos filhos que eram separados de suas mães escravizadas. Muitos morriam por falta de aleitamento ou eram abandonados pelos senhores dessas mulheres em igrejas, praças públicas ou instituições de caridade”, relata.

O tema da maternidade na escravidão foi estudado em um projeto de pesquisa financiado pelo Arts and Humanities Research Council (AHRC), do Reino Unido, que vigorou entre 2015 e 2016, reunindo Maria Helena e outras pesquisadoras que também trabalham com escravidão e gênero. Elas organizaram um dossiê, com dois volumes, intitulado Mothering slaves: Motherhood, childlessness and the care of children in atlantic slaves societies, publicados nas revistas Slavery and Abolition e Women’s History Review, em junho e agosto deste ano.

A historiadora Karoline Carula, professora no Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), afirma que, após a década de 1870, teorias científicas que racializavam a humanidade começaram a ser difundidas no Brasil. “Para os médicos com uma visão racializada da humanidade e que consideravam os negros inferiores, a inferioridade racial gerava leite ruim. Assim, eles passaram a depreciar o leite das amas negras”, detalha Karoline.

Em outra atividade central à saúde da população no século XIX, as parteiras também eram majoritariamente escravas e libertas. Os partos eram feitos em casa e apenas mulheres miseráveis optavam por parir em hospitais ou casas de saúde. “Naquela época, os médicos tinham uma formação teórica e geralmente concluíam os estudos sem ter assistido a partos, enquanto as parteiras dispunham de anos de experiência prática”, conta Maria Helena.

Alberto Henschel & Cº / Acervo Fundação Joaquim Nabuco - Ministério da Educação A parteira e ama de leite Petrolina com uma criança branca no Recife: fotos evidenciam destino incerto dos bebês negrosAlberto Henschel & Cº / Acervo Fundação Joaquim Nabuco - Ministério da Educação

A historiadora Lorena Féres da Silva Telles, doutoranda na FFLCH-USP e autora do livro Libertas entre sobrados: Trabalho doméstico em São Paulo (1880-1900) (Alameda, 2014), considera que a falta de prática dos médicos em obstetrícia é uma questão que atravessa o século XIX. A entrada dos médicos nesse campo foi lenta por conta de barreiras morais, que faziam manequins serem usados nos estudos práticos da faculdade. Lorena identificou em suas pesquisas que as únicas oportunidades de os estudantes assistirem aos partos eram no caso das mulheres escravizadas, libertas ou pobres. “Em uma maternidade municipal que funcionou no Rio no início da década de 1880, os partos eram feitos na presença de estudantes, que podiam apalpar, observar a dilatação e examinar as mulheres, provavelmente contra a vontade delas. O conhecimento médico em obstetrícia nesse período foi desenvolvido sobretudo a partir da experiência com mulheres pobres ou escravas”, sustenta. A pesquisadora fez essas constatações analisando casos clínicos publicados em revistas médicas da época; teses de conclusão de curso em medicina sobre os temas da amamentação e higiene infantil defendidas durante o século XIX; jornais diários e periódicos médicos disponíveis na Biblioteca Nacional e na biblioteca do Centro de Ciências da Saúde da UFRJ.

Um curandeiro no Hospital da Marinha
Entre 1808 e 1828, a Fisicatura-mor reprimiu o trabalho de pessoas não habilitadas formalmente para atuar com práticas de cura, entre elas os curandeiros. Depois de 1828, apesar de proibidos pelo órgão de trabalhar, os curandeiros mantiveram a credibilidade entre a população. A historiadora Rosilene Gomes Farias, doutora pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), estudou a trajetória do africano escravizado Pai Manoel e sua atuação como curandeiro durante a epidemia de cólera no Recife, em 1856. A historiadora conta que, nos momentos iniciais da epidemia, ele atendia principalmente a população negra e mestiça. Depois, algumas curas atribuídas ao seu remédio atraíram a atenção de famílias abastadas e também dos médicos.

“Pesquisando em jornais da época como Diário de Pernambuco ou O Liberal Pernambucano, vi que os médicos da Comissão de Higiene Pública procuraram o curandeiro para saber detalhes do seu tratamento, feito a partir de uma fórmula com ervas”, conta Rosilene. No momento mais crítico da epidemia, as autoridades permitiram que Pai Manoel atuasse no Hospital da Marinha. O episódio repercutiu mal na Academia Imperial de Medicina e motivou a renúncia coletiva dos membros da Comissão de Higiene Pública, além da prisão do curandeiro. “Sua história revela as disputas que existiam entre médicos e curandeiros no século XIX”, conclui.

Livro
PIMENTA, T. S. e GOMES, F. (orgs.) Escravidão, doenças e práticas de cura no Brasil. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2016, 312 p.

Artigos científicos
FARIAS, R.G. Pai Manoel, o curandeiro africano, e a medicina no Pernambuco imperial. Hist. Cienc. Saúde-Manguinhos. v.19, p.215-231. 2012.
MACHADO, M.H.P.T. Between two Beneditos: enslaved wet-nurses amid slavery’s decline in southeast Brazil. COWLING, C. et al. (orgs.Slavery and Abolition. Special Issue: Mothering Slaves: Motherhood, Childlessness and the Care of Children in Atlantic Slaves Societies. v. 38, n. 2. jun 2017.
PIMENTA, T. S. Midwifery and childbirth among enslaved and freed women in Rio de Janeiro in the first half of the nineteenth century. COWLING, C. et al. (orgs.) Women’s History Review. Special Issue: Mothering Slaves: Motherhood, Childlessness and the Care of Children in Atlantic Slaves Societies. on-line. ago 2017.
TELLES, L. F. S. Pregnant slaves, workers in labour: amid doctors and masters in a slave-owning city (nineteenth-century Rio de Janeiro). COWLING, C. et al. (orgs.) Women’s History Review. Special Issue: Mothering Slaves: Motherhood, Childlessness and the Care of Children in Atlantic Slaves Societies. on-line. ago 2017.

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