Imprimir Republicar

Obituário

No front da educação científica

O físico Ernst Hamburger construiu caminhos para popularizar a ciência no Brasil

Léo Ramos Chaves Ernst Hamburger fotografado em 2013, no Instituto de Física da USPLéo Ramos Chaves

Ernst Hamburger costumava responder com modéstia sobre suas contribuições para a ciência. “Fiz vários trabalhos de que gosto muito, mas nada de excepcionalmente importante, ao contrário de alguns colegas”, disse o físico e professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) para Pesquisa FAPESP em 2014. O interesse inicial em investigar do que são formados os núcleos atômicos foi, no entanto, a mola propulsora para se tornar um dos principais nomes da educação e da divulgação da ciência no Brasil. Na década de 1960, ao retornar do doutorado nos Estados Unidos, foi o responsável por introduzir no curso de física na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, a ideia de que a instituição não deveria se preocupar apenas com a realização de pesquisas de ponta, mas também com a disseminação do conhecimento para além dos limites da universidade. Nos anos 1970, já professor no Instituto de Física, idealizou o Laboratório de Demonstrações, que oferece um grande acervo de equipamentos e experimentos de mecânica, magnetismo, óptica, termodinâmica, entre outros, que podem ser utilizados em sala de aula. O físico e divulgador científico morreu no dia 4 de julho, aos 85 anos, em São Paulo, vítima de um linfoma, contra o qual lutava há três anos.

Em mais de 50 anos, Hamburger colocou em prática diversos projetos para aproximar jovens da ciência. Entre 1994 e 2003, foi diretor da Estação Ciência, museu interativo da USP que funcionava no bairro da Lapa, em São Paulo. Lá, criou o projeto Clicar, para alfabetizar crianças de rua e ensinar a elas noções de computação – algumas delas mais tarde se tornaram monitores do espaço. Ao final de sua gestão, seguiu trabalhando na sede da Estação Ciência, coordenando outro projeto, o Programa ABC na Educação Científica – Mão na Massa, voltado à formação de professores de ensino infantil e fundamental em ciências e matemática. “Ele era muito cordial e sempre dava sugestões sobre como fazer a popularização científica”, conta o geólogo Wilson Teixeira, professor do Instituto de Geociências da USP e diretor da Estação Ciência entre 2004 e 2008. “Certa vez, ele me recomendou que visitasse museus de ciência de Paris para ter conhecimento de como se faz divulgação científica de alto nível. Antes que eu providenciasse a viagem, ele entrou em contato com algumas instituições de lá e acertou minha visita”, recorda Teixeira. “O professor Hamburger foi uma referência, como liderança científica e na política acadêmica”, disse Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. “Ideias claras, poder de exposição, objetividade e determinação. Defendeu sempre e com eficácia a boa universidade pública e os valores acadêmicos. Aprendi muito com ele e sentiremos sua falta”, afirmou à Agência FAPESP.

Ernst Wolfgang Hamburger nasceu em Berlim, na Alemanha, no dia 8 de junho de 1933, durante a ascensão do nazismo. Seu pai era juiz e foi demitido do cargo por ser judeu. Com a escalada do antissemitismo, a família abandonou a Alemanha e partiu rumo ao Brasil em 1936. Durante o ginásio (atual ensino fundamental) no Colégio Estadual Presidente Roosevelt, conheceu o físico Herch Moysés Nussenzveig, de quem se tornou amigo. “Tínhamos o hábito de estudar física juntos e nos interessamos pela disciplina ao mesmo tempo. Foi um dos meus melhores amigos na juventude. Infelizmente, não tivemos a oportunidade de fazer pesquisas juntos”, diz Nussenzveig, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Hamburger começou seu trabalho em pesquisa ainda aluno de graduação da USP, como estagiário na montagem do acelerador Van der Graaff, no final da década de 1950. Foi nesse período que teve aulas com o físico norte-americano David Bohm (1917-1992) e conheceu a física e, posteriormente, historiadora da física Amélia Império (1932-2011), com quem se casou e teve os filhos Esther, Sônia, Vera, Fernando e Carlos (Cao). Concluída a graduação em 1954, seguiu com Amélia para a Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos. Lá, ela fez o mestrado e ele, o doutorado sobre reações nucleares de deutério.

Mal havia retornado para o Brasil, o casal precisou regressar aos Estados Unidos em decorrência de perseguições políticas promovidas pela ditadura militar. “Quando houve o golpe de 1964, todo mundo na Faculdade de Filosofia ficou muito desanimado porque alguns fundadores da Física estavam sendo expulsos. Voltamos para Pittsburgh, eu numa posição de professor assistente visitante, enquanto Amélia foi trabalhar na Carnegie Mellon”, relatou Hamburger na entrevista de 2014.

Foi somente em 1967 que retornaram de vez para o Brasil. No ano seguinte, Hamburger se tornou professor catedrático do Departamento de Física, que se tornaria mais tarde o Instituto de Física da USP (IF-USP). “Até a década de 1960, o departamento era exclusivamente voltado para a pesquisa científica em áreas de vanguarda, como física nuclear. O ensino da física era pouco valorizado pelos pesquisadores da época. Hamburger defendeu que os cientistas deveriam também se dedicar a atividades educativas e de divulgação para o grande público. Nesse sentido, ele fez uma grande contribuição para o ensino de física no Brasil”, observa o físico José Goldemberg, presidente da FAPESP. No IF-USP, Hamburger criou uma pós-gradução em ensino de ciências e organizou o primeiro Simpósio Nacional de Ensino de Física.

Em sua trajetória, desempenhou outras funções: foi diretor da Sociedade Brasileira de Física (SBF) e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Também foi membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e comendador da Ordem Nacional de Mérito Científico do Brasil. Recebeu vários prêmios no país e no exterior, entre eles o Kalinga Prize for the Popularization of Science, concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Mesmo aposentado, trabalhou na USP até pouco tempo atrás, antes de ficar doente. Em 2014, aos 80 anos, contou a Pesquisa FAPESP que havia feito uma lista com 20 coisas que ainda pretendia fazer. “A mais urgente”, disse, “é colocar em ordem meus papéis, que incluem as cartas que minha avó trocou com uma amiga. Minha mãe guardou e são muito esclarecedoras e interessantes”.

Republicar