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Resenha

Uma investigação rara

A trama da natureza: Organismo e finalidade na época da Ilustração | Pedro Paulo Pimenta | Editora Unesp | 69 páginas | R$ 74,00

Eduardo CesarA especificidade da vida e do funcionamento do organismo e sua manifesta inexplicabilidade a partir das leis da física newtoniana estão entre as grandes questões do século XVIII. Como explicar a estrutura e as funções dos seres vivos de maneira inteiramente mecânica, sem recorrer às causas finais, tão condenadas pelo modelo vigente de ciência natural? Será possível deixar de conceber os organismos segundo o modelo da máquina produzida em vista de um fim? Eis questões que estão no centro das preocupações de pensadores como David Hume (1711-1776), Denis Diderot (1713-1784) e Immanuel Kant (1724-1804). O livro de Pedro Paulo Pimenta, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), parte daí e expõe seus desdobramentos para indicar como a constituição da biologia como ciência se deve a uma superação da oposição entre o orgânico e o mecânico.

O livro se inicia com Hume, que critica a analogia do mundo como máquina e que defende que nenhuma espécie de finalidade é necessária no estudo da natureza, inclusive quanto aos organismos. Na esteira da reflexão do pensador escocês, dos enciclopedistas e de George Buffon (1707-1788) e Louis Daubenton (1716-1800), autores da História Natural, Kant formula a questão dos organismos e da finalidade e advoga a imprescindibilidade do juízo teleológico no exame dos corpos orgânicos. Pimenta mostra como a partir dessa formulação desdobram-se duas vertentes de abordagem da história natural: uma que possui cunho experimental e é representada por Georges Cuvier (1769-1832), pai da anatomia comparada, e outra matriz que é transcendental, partindo da ideia de unidade e finalidade e que é encabeçada, por exemplo, por Geoffroy Saint-Hilaire (1779-1853).

Esse é um dos eixos da obra em torno do qual outras questões que lhe são estreitamente relacionadas são abordadas, como o modelo de equilíbrio de Adam Smith (1723-1790) para a economia e sua relação com o pensamento sobre os organismos, ou a relação entre razão, sistema e máquina, tal como foi pensada pelos autores da Enciclopédia, Diderot e Jean le Rond D’Alembert (1717-1783). Algumas importantes controvérsias que marcaram a história natural dos séculos XVIII e XIX são tratadas, como a questão se há ou não um desenho originário da natureza que constitua uma estrutura comum aos seres organizados, se o princípio de estruturação do vivente é anatômico ou fisiológico, bem como se houve extinção de espécies ou não.

O autor descortina desdobramentos surpreendentes. Um dos mais interessantes é aquele que ocorre na denominada querela dos análogos. Cuvier, que rejeita a tese de perfeição e de plano único na natureza, será posteriormente associado a certo criacionismo, ao passo que Saint-Hilaire, defensor de uma concepção teleológica da natureza e da tese de que os seres naturais podem ser hierarquizados a partir de uma série una, será apropriado por uma espécie de estruturalismo, de acordo com o qual as formas sofrem variações sem que seja necessário qualquer recurso às causas finais. Posteriormente, Charles Darwin (1809-1882) se assenhora de aspectos da teoria de ambos para afirmar a preponderância dos fatores internos aos organismos na gênese de suas variações e se opor a Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829).

A essa virtude se acrescentam outras. Pimenta fundamenta suas interpretações em finas análises de texto e de outros materiais, como desenhos e modelos. O autor realiza um tipo de investigação que ainda é rara, mesclando pensadores clássicos da história da filosofia e autores que usualmente são vistos como cientistas e naturalistas, mais propriamente do que como filósofos. Como bem indica, as metodologias e teorias adotadas por estes são de grande consequência para a filosofia.

O livro é composto por 16 capítulos que podem ser lidos separadamente. Há um intenso diálogo entre eles, mas não propriamente uma continuidade e muito menos linearidade. Por vezes, um mesmo tema é abordado a partir de diferentes perspectivas, como é o caso de alguns dos capítulos dedicados a Hume e a Kant. Assim como o termo “natureza” não possui um significado unívoco e seu estudo não se restringe à física, os assuntos do livro se apresentam a partir de diferentes relações e pontos de vista.

Celi Hirata é professora adjunta de história da filosofia moderna no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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