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Difusão

Arte sintetizada em laboratório

Artistas utilizam ferramentas da ciência para criar obras e instalações

Em Culturas degenerativas, fungos avançam sobre livros e corrompem textos digitais que tratam do controle da natureza por humanos

Cesar & Lois

Exemplares de livros que tratam do empreendimento humano em dominar a natureza, como De natura deorum, do orador romano Cícero (106 a.C.-43 a.C.), servem de banquete a uma colônia de fungos da espécie Physarum polycephalum, um tipo de bolor amarelado. O avanço do fungo sobre as páginas é registrado por uma câmera conectada a um sistema de visão computacional e alimenta um algoritmo de inteligência artificial que, paralelamente, corrompe um banco de dados: o resultado é que os fungos parecem “comer” lentamente também documentos digitais. Toda a atividade, divulgada em uma conta do Twitter, faz parte da instalação artística Culturas degenerativas, em exposição até 23 de setembro no Brighton Digital Festival, na Inglaterra. “A manipulação de organismos vivos ou de algoritmos permite à arte propor discussões estéticas e conceituais com base em conhecimentos e modos de fazer do nosso tempo”, afirma o artista brasileiro Cesar Baio, coautor da obra com o The League of Imaginary Scientists (Lois), um coletivo de arte sediado nos Estados Unidos.

Professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Baio atua em uma área transdisciplinar conhecida como arteciência, que ganhou notoriedade recente e usa metodologias, equipamentos ou conceitos científicos não só como ferramentas no processo de criação artística, mas também como formas de expressão. Baio também é um dos fundadores do Laboratório de Pesquisa em Arte, Ciência e Tecnologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), que desde 2015 promove projetos desse tipo. “Trata-se de uma estrutura que agrupa pesquisadores de várias áreas, como filosofia, biologia e computação, interessados em articular diferentes campos do conhecimento”, diz.

A criação do laboratório, conta ele, foi inspirada em iniciativas como o Laboratório Symbiotica, da Universidade do Oeste da Austrália, criado em 1996 pelo designer finlandês Oron Catts, conhecido por utilizar células-tronco e o cultivo de tecidos vivos como matéria-prima para suas obras. “Mesmo estando inserido em uma universidade intensiva em pesquisa, o Symbiotica tem liberdade para promover trabalhos artísticos independentes”, disse Catts à Pesquisa FAPESP. “Artistas podem fazer residência em outros laboratórios da universidade e ter acesso aos mesmos equipamentos e recursos tecnológicos utilizados por qualquer pesquisador da instituição. É uma maneira de libertar essas ferramentas das agendas um tanto restritas da ciência e das engenharias para serem utilizadas em contextos culturais mais críticos”, observa.

Cesar & Lois Fungos avançam sobre livros e corrompem textos digitais que tratam do controle da natureza por humanosCesar & Lois

No Brasil, experiências semelhantes vêm surgindo, como mostra um estudo publicado em junho na revista Ciência e Cultura, ao traçar um panorama da produção acadêmica brasileira na área de arteciência. “Com base em dados extraídos da Plataforma Lattes e do Google, identificamos 131 pesquisadores que atuam nesse campo no Brasil”, conta o farmacêutico e coreógrafo João da Silveira, pesquisador visitante da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e autor do artigo. Desse total, foram analisados 51 perfis, considerados os mais relevantes em termos de produção científica. Examinaram-se aspectos como os locais e áreas de formação acadêmica e de atuação profissional e o gênero dos pesquisadores. De acordo com o estudo, entre os 51, a maior parte é de mulheres (31). A maioria dos pesquisadores analisados (66,7%) trabalha na região Sudeste – ante 11,8% no Centro-Oeste, 9,8% no Sul, 9,8% no Nordeste e 2% na região Norte.

Um dos grupos identificados pelo estudo está concentrado no Núcleo de Arte e Novos Organismos (Nano), instalado em 2010 na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Nossos projetos lidam com organismos vivos e sistemas artificiais”, explica o artista Guto Nóbrega, coordenador do Nano, onde investiga formas de produzir arte a partir de atividades das plantas. Em um de seus projetos mais destacados, BOT_anic, uma planta conhecida como jiboia (Epipremnum pinnatum) é monitorada e orienta os movimentos de um pequeno robô. “Quando uma pessoa respira perto da planta, há variações eletrofisiológicas na superfície das folhas captadas por sensores. Os sinais elétricos acionam os motores do robô, que se movimenta em direção à pessoa”, explica Nóbrega, que quis suscitar questionamentos sobre a sensibilidade das plantas e a relação entre humanos e máquinas.

Entrevista: João da Silveira
     

Não é raro que museus de história natural, planetários e jardins botânicos abriguem exposições com imagens e ilustrações produzidas por artistas e pesquisadores. Um exemplo é o coletivo ArtBio, que desde 2014 promove a Mostra de Arte Científica Brasileira, com fotografias feitas com microscópios. “Ciência e arte são linguagens que desvendam véus e mistérios. Cada obra da mostra se abre ao espectador não como uma certeza absoluta, mas como ambiguidade no ato da contemplação”, diz o designer De Aquino, um dos organizadores da mostra. A relação entre arte e ciência, contudo, não se limita a iniciativas de divulgação científica, observa Martin Grossmann, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). “Campos de fronteira como biotecnologia e inteligência artificial têm chamado a atenção de artistas e pesquisadores interessados em explorar novas possibilidades estéticas”, afirma Grossmann.

Os pesquisadores que atuam nessa intersecção se queixam da dificuldade em conseguir financiamento para seus projetos. “Nas agências de fomento não existe uma área ou subárea específica para pesquisas situadas nas relações entre arte e ciência e, por isso, é mais difícil articular uma avaliação adequada para esse tipo de projeto”, explica o artista visual e curador Pablo Gobira, professor do Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), um dos fundadores, em 2013, do Laboratório de Poéticas Fronteiriças. Para ele, um traço comum entre artistas que atuam em arteciência é o esforço para que o público tenha acesso a reflexões próprias da arte – o que nem sempre é viável. “Hoje é possível fazer um desenho em uma placa de Petri utilizando microrganismos geneticamente modificados, mas não significa que qualquer experimentação estética resulte em arte”, pondera Gobira. Segundo ele, os processos artísticos envolvem não apenas a criatividade, mas os conceitos integrados à obra.

Guto Nóbrega Na obra BOT_anic, uma planta controla os movimentos de um pequeno robô que interage com o públicoGuto Nóbrega

A articulação da ciência com a arte está longe de ser novidade – os dois campos caminhavam juntos no passado. Leonardo da Vinci (1452-1519) e Michelangelo Buonarroti (1475-1564) produziram grandes obras de anatomia de interesse científico. “A utilização da matemática e da geometria ajudou a revolucionar a representação da perspectiva em obras de arte na Renascença”, ressalta Grossmann. A partir da virada do século XIX para o XX, novas técnicas, como a fotografia, proporcionaram campos de ação inéditos para a arte.

Desde então, outras áreas do conhecimento, como as engenharias, tornaram-se não apenas fontes de inspiração, mas passaram a emprestar métodos de trabalho aos artistas, como escreveu Cristina Barros Oliveira, pesquisadora do Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa, em artigo publicado em 2015. Artistas como o francês Marcel Duchamp (1887-1968) abriram caminho para a experimentação com novos materiais. Sua obra O grande vidro, de 1915, constituída de duas chapas de vidro imensas – nas quais fios de chumbo, óleo e verniz são usados na composição –, é um marco, observa Grossmann. Acredita-se que o primeiro artista a usar organismos vivos em uma exposição tenha sido o fotógrafo Edward Jean Steichen (1879-1973), de Luxemburgo. Ele cruzou diferentes espécies de plantas do gênero Delphinium, resultando em novas variedades, que foram exibidas no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York.

Em meados da década de 1990, avanços da biotecnologia deram origem à bioarte, um movimento artístico inspirado em técnicas da engenharia genética. “Manipular a vida tornou-se uma nova forma de criação estética”, afirma o artista brasileiro Eduardo Kac. Radicado há 30 anos nos Estados Unidos, onde dá aulas na School of the Art Institute of Chicago, Kac ganhou notoriedade em 1997, quando implantou um microchip no próprio corpo como parte de um experimento artístico batizado de Cápsula do tempo. Em 2000, o artista surpreendeu ao criar, com a colaboração de cientistas do Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica da França, uma coelha albina, chamada Alba, que emitia luz verde quando submetida à luz azul – os pesquisadores haviam introduzido em células reprodutivas de sua mãe um gene que produz uma proteína verde fluorescente, a GFP, extraída de um tipo de água-viva. “Meu objetivo era criar um ser vivo que nunca existiu na natureza”, diz Kac. A obra gerou controvérsias e motiva debates sobre os limites da manipulação genética e da própria arte até hoje.

Em um manifesto publicado no ano passado, Kac e outros artistas delimitam a bioarte como uma forma de expressão artística que utiliza como ferramentas proteínas, tecidos vivos e DNA. A artista portuguesa Marta de Menezes, uma das signatárias do manifesto, alerta que a bioarte não tem como objetivo enaltecer a biotecnologia. “A arte pode levantar questionamentos sobre se determinada técnica deve ser empregada ou não e também discutir aspectos éticos em jogo”, afirma Marta. Em trabalhos recentes ela explora a ferramenta de edição de genes CRISPR-Cas9, que tem potencial para corrigir defeitos genéticos associados a doenças.

Robertba/Ars Electronica Cianobactérias povoam placas de computador em instalação exibida por Hideo Iwasaki e Oron Catts em 2010Robertba/Ars Electronica

A artista começou a trabalhar nessa área no final dos anos 1990, quando, ainda na graduação em artes plásticas na Universidade de Lisboa, começou a pintar telas que remetiam a temas da biologia, como neurônios e células embrionárias. O casamento com um imunologista e a amizade com cientistas a levaram a se interessar pelos trabalhos realizados em laboratórios de biologia. “Comecei a escrever para pesquisadores pedindo que me aceitassem como residente em seus laboratórios”, conta Marta, que estreou em 2000 com a instalação Nature?, uma grande estufa que serviu de hábitat para borboletas vivas, inspirada em uma pesquisa do biólogo holandês Paul Brakefield sobre os fatores que afetavam a formação dos padrões das asas de borboletas.

O grupo de Brakefield havia desenvolvido uma técnica, que não envolve manipulação de genes, capaz de modificar o padrão das asas ainda no casulo. “As borboletas manipuladas apresentavam padrões nunca antes vistos na natureza. Percebi que aquilo tinha potencial artístico”, recorda Marta, que fez um estágio no laboratório do pesquisador. O procedimento, segundo ela, não agride as borboletas, pois não existem terminações nervosas nas asas. O objetivo, diz Marta, era questionar o conceito de natural versus artificial. Ela recorda que, em uma das reuniões com a equipe de Brakefield, se discutiu por que o trabalho deles era ciência e o dela arte, se a matéria-prima era a mesma. “O que determina o meu trabalho ser arte não é o tipo de material que uso, e sim as questões que levanto com minhas obras.”

Mas muitas vezes o cientista e o artista coexistem na mesma pessoa, como é o caso do biólogo e bioartista japonês Hideo Iwasaki, coordenador do Laboratory for Molecular Cell Network & Biomedia Art da Universidade Waseda, em Tóquio. Estudando há anos a formação de padrões de cianobactérias, também conhecidas como algas azuis, Iwasaki decidiu incorporar seu objeto de pesquisa às obras que produz. “Desenvolvo tanto a prática artística quanto as investigações científicas para explorar o espírito crítico sobre o que é a vida”, afirma Iwasaki. Em 2010, ele e Catts, do Laboratório Symbiotica, na Austrália, criaram um projeto chamado Biogenic timestamp, no qual trabalharam com uma cultura de cianobactérias, que obtêm energia por fotossíntese. As algas foram aplicadas sobre uma placa de computador, que vem sofrendo a ação desses organismos até hoje.

Segundo os criadores, as colônias se instalam nas superfícies metálicas do hardware, em uma representação sobre a integração entre seres vivos e tecnologias. “A abordagem estética é uma das maneiras de explorar os limites entre o conhecimento científico e noções de vida. Materiais biológicos são meios interessantes para propor essa discussão, mas o mais importante são os conceitos filosóficos e éticos vinculados à obra”, diz Iwasaki.

Artigo científico
SILVEIRA, J. R. A. et al. Arteciência: Um retrato acadêmico brasileiro. Ciência e Cultura. On-line. v. 70, n. 2. 2018.

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