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Resenhas

A nova (velha) face do poeta de sete faces

Maquinação do mundo: Drummond e a mineração | José Miguel Wisnik | Companhia das Letras | 328 páginas | R$ 64,90

Por causa da inerente pluralidade (segredo nem sempre visível), uma das principais características da grande obra literária é justamente a de possibilitar que, ao longo do tempo, olhares críticos enxerguem detalhes ainda não revelados, embora, é certo, sempre disponíveis nos textos. Assim, quando o leitor experimentado, alumbrado – às vezes – pelo acaso, atenta ao não visto, outro viés analítico pode vir à tona, com chances, inclusive, de ser incorporado de imediato à fortuna crítica de tal obra. É esse o caso do recente livro de José Miguel Wisnik – Maquinação do mundo: Drummond e a mineração. Em leitura original, nascida da viagem ocasional a Itabira e do impacto do lugar, o crítico acrescenta uma nova (velha) face ao poeta de sete faces, sobretudo ao focalizar a relação profunda e muitas vezes sibilina que Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) estabeleceu em sua obra com a mineração e a maquinação do mundo.

Metaforizado numa espécie cifrada de terza rima sem rima, aliás, a mesma que, como se sabe, permeia “A máquina do mundo” drummondiana, o livro de Wisnik se articula em três partes que, ajustadas com precisão algo poética, compõem uma visada analítica singular.

Na primeira, “O espírito do lugar”, o autor revisita Itabira, a cidade da infância do poeta mineiro e “entidade poética” conhecida de todos, sobretudo pela “fotografia na parede”, que ainda dói, e pelo sino que, “inscrito na memória mais recôndita”, não cessa de bater, ambos já tão perenizados em poemas. É nessa Itabira, quase mitológica, que o crítico (re)encontra “o cruzamento subterrâneo da fantasia provincial do sujeito, entranhada no mundo das relações patriarcais, com a realidade implicada na exploração mundial do ferro”. Concomitante à nascente consciência do “sentimento do mundo”, a destruição progressiva do pico do Cauê, retirado a fórceps da paisagem natural, é transformada em mote recorrente, em gesto de resistência (aparentemente inútil) ao progresso devastador da atividade mineradora que pulverizou a montanha. Para o poeta, no entanto, sempre ficou a certeza de que “cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê”.

Na segunda, “Maquinações minerais”, Wisnik radiografa tanto o processo histórico da montagem da máquina extrativista moderna, da chegada dos estrangeiros e a avidez com que compraram aquela “terra só de ferro” até a instalação do Projeto Cauê pela Companhia Vale do Rio Doce, como as repercussões em prosa e em verso do poeta mineiro, “que vão desde a notação fina, a rememoração lírica, a resistência sintomática e a intervenção de protesto até o enigma, a alegoria e a cifra interrogante sobre o destino humano”. Apesar da “derrota incomparável”, o poeta, sempre ciente do “destino mineral” do lugar, reclamou em vários momentos, às vezes com corrosiva ironia, que ao menos parte do lucro do negócio minerador também beneficiasse sua “cidadezinha qualquer”.

Já na terceira e última parte do livro, “A máquina poética”, e dialogando – entre outras – com as leituras de “A máquina do mundo” feitas por Alfredo Bosi e Alcides Villaça, mas, ao mesmo tempo, apresentando outra saída para o duplo problema fulcral do poema, isto é, o do convite e o da recusa a “tudo [que] se apresentou nesse relance / […] afinal submetido à vista humana”, Wisnik salienta como novidade analítica a visão contemporânea da própria “máquina do mundo” que desemboca no “sono rancoroso dos minérios”, desvelando – em suas palavras – tanto “a tecnociência contemporânea” quanto “os dispositivos de dominação e exploração do mundo agindo sobre todas as esferas objetivas e subjetivas da existência”. Ou seja, ao realçar no poema a força da “máquina capitalista”, que transforma e destrói tudo, o crítico acrescentou mais um motivo à recusa do sujeito poético.

Enfim, além da leitura de “A máquina do mundo” e de abrir outras possibilidades para a leitura de Boitempo, José Miguel Wisnik, como se palmilhasse vagamente a estrada poética de Carlos Drummond de Andrade, devolveu ao poeta – como nova – uma velha face que, no fundo, sempre esteve ali, entranhada no tecido mais íntimo dos poemas. Precisava apenas ser (re)vista, e foi.

Wilton José Marques é professor de literatura brasileira e teoria literária da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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