Imprimir PDF Republicar

Resenhas

O catolicismo na África portuguesa

Além do visível: Poder, catolicismo e comércio no Congo e em Angola (séculos XVI e XVII) | Marina de Mello e Souza | Edusp | 320 páginas | R$ 38,40

Foi por engano que Parati: A cidade e as festas caiu em minhas mãos. De férias, procurava uma leitura de verão. Mirei no que vi, acertei no que não vi. O primeiro livro de Marina de Mello e Souza tratava das festas populares religiosas da cidade, de suas permanências e mudanças ao longo do século XX, interrogando-se sobre suas origens e sobre seus significados mais amplos. Quais os sentidos do catolicismo popular brasileiro? Quais festas permanecem, quais desaparecem nas tradições brasileiras?

Marina aprofundou essas questões em Reis negros no Brasil escravista, seu segundo livro: sempre interessada nas festas religiosas populares, ela se dedica a analisar, no Congo, a origem das festas de coroação dos reis negros, as congadas, comuns a todas as regiões brasileiras habitadas por africanos escravizados nos séculos XVIII e XIX (mas desaparecidas na Paraty do século XX).

Começo assim porque o lançamento de seu mais recente trabalho, Além do visível: Poder, catolicismo e comércio no Congo e em Angola, é uma ótima novidade que, agora, já não causa nenhuma surpresa. Consolidando sua trajetória como africanista, Marina retrocede ainda mais no tempo em busca de respostas para as perguntas que marcam o conjunto de sua obra: a constituição do catolicismo na África portuguesa, suas articulações com as dinâmicas do poder colonial, com a formação das identidades e da religiosidade popular.

Organizando sua análise em três eixos articulados – o comércio, o poder e o catolicismo –, ela orienta sua narrativa para os reinos do Congo, Dongo, Dembo e de Matamba nos séculos XVI e XVII, quando as populações centro-africanas foram alvo de intensa expansão missionária. Em linhas gerais, esse é um tema bastante conhecido da historiografia especializada; mas a perspectiva adotada pela autora é menos trabalhada, e por isso mais relevante: interessada no olhar dos africanos e em seus próprios interesses em estabelecer alianças e relações comerciais com os portugueses, ela quer entender a maneira como os centro-africanos viram os brancos a partir de seus próprios referenciais cognitivos.

Nesse sentido, é exemplar sua leitura do lugar que a cruz, símbolo máximo do projeto evangelizador católico, ocupa nos próprios ritos centro-africanos, realizada no primeiro capítulo, que trata dos contatos iniciais entre a sociedade congolesa e os portugueses, quando o catolicismo foi adotado como religião oficial no Congo. Se, naquele país, o catolicismo marcou o fortalecimento do poder central, no território que veio a ser denominado Angola, objeto do segundo capítulo, o contexto era radicalmente distinto: nesse caso, religião e conquista foram duas expressões de um projeto colonial que, após muitos conflitos, logrou consolidar o primeiro sistema moderno de comércio de escravos que contava, além dos portugueses, com a fundamental participação de agentes locais.

O livro não tem uma protagonista principal. Caso houvesse, certamente seria Njinga, a rainha de Matamba, foco do terceiro capítulo e famosa pela maneira como lidou com seus subordinados e com missionários holandeses e portugueses. Antes de virar mito, Njinga foi personagem real, fundamental na relação entre jagas, ambundos e portugueses no século XVII. Convertida ao catolicismo sucessivas vezes, foi provavelmente a melhor expressão da centralidade desempenhada pela religião nas disputas locais por prestígio e poder.

No quarto capítulo, o seu mais difícil – porque dispõe de menos fontes –, a autora tenta compreender justamente o aspecto que vem a conferir o título do livro: o envolvimento das populações locais na tarefa missionária, a princípio pouco visível nos estudos sobre a expansão do catolicismo na região. Não à toa, a conclusão enfatiza as múltiplas formas como os africanos-centrais abraçaram a religião dos europeus ao longo do século XVII: sem deixar de atestar a força da presença portuguesa, Marina conclui que é impossível entender qualquer projeto de conquista e colonização sem levar em conta a perspectiva daqueles que acabaram por ser dominados.

Além do visível é um livro didático no melhor sentido do termo. Os especialistas certamente o lerão; os iniciantes e os interessados em geral encontrarão, na prosa de Marina, um convite ao aprendizado e à reflexão. É tudo o que se quer de um livro de história.

Keila Grinberg é professora titular do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

Republicar