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Arqueogenômica

Caminhos do milho

DNA indica uma história mais complexa para a domesticação do cereal, com destaque para o México e a Amazônia

Uma linha do tempo que vai do teosinto (semelhante a fios de contas) às espigas disponíveis hoje no mercado, passando pela diversidade andina, ilustra o processo de domesticação do milho: fica na Galeria da Biodiversidade do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto (Portugal)

Daniel Espírito Santo e João Botas / Ecsite / MHNC-UP / Ciência Viva

Passar um dia inteiro sem comer milho, mesmo indiretamente, é quase uma missão impossível. Considera-se que esse cereal seja responsável por 6% das calorias consumidas pela população humana mundo afora, sem falar no que entra como ração na pecuária e está oculto em alimentos processados. Muito antes de existirem as grandes espigas amareladas disponíveis hoje em feiras e supermercados, o ancestral do milho era uma planta mexicana com poucos grãos que se soltavam facilmente da espiga e uma casca praticamente intransponível. Um grupo internacional de pesquisadores agora detalha um pouco mais essa história de 9 mil anos e mostra um papel proeminente das populações humanas pré-colombianas da Amazônia, de acordo com estudo publicado nesta quinta-feira (13/12) na revista Science.

Há cerca de 20 anos, o engenheiro-agrônomo Fabio de Oliveira Freitas, atualmente na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília, recebeu amostras de milho encontradas em sítios arqueológicos em cavernas do norte de Minas Gerais, no vale do Peruaçu. “Era claro que cerca de 1.500 anos atrás essa planta era cultivada por ali de maneira constante e usada em oferendas em enterramentos e rituais”, conta. Durante o doutorado ele passou um período na Universidade de Manchester, Inglaterra, onde encontrou o geneticista de plantas britânico Robin Allaby, à época em estágio de pós-doutorado. “Fabio tinha fantásticas amostras de milho indígena atual e arqueológico de terras baixas tropicais”, disse Allaby em conferência de imprensa. Atualmente na Universidade de Warwick, também na Inglaterra, ele coordenou o estudo junto com Freitas. “Naquela época detectamos duas levas migratórias do milho para a América do Sul, mas conseguíamos sequenciar uma parte muito pequena do genoma”, relembra o brasileiro.

Flaviane Malaquias Costa / USP Diversidade conservada por índios Guarani Kaiowá, em Mato Grosso do SulFlaviane Malaquias Costa / USP

Com o avanço das técnicas genômicas, eles recentemente decidiram voltar ao assunto e conseguiram sequenciar por completo tanto amostras arqueológicas de Minas Gerais e do Peru como uma grande diversidade armazenada nas salas geladas da Embrapa. “Temos cerca de 5 mil amostras recolhidas por todo o Brasil”, afirma Freitas.

As análises revelaram assinaturas genéticas específicas indicando que o milho que chegou ao Brasil no período pré-colombiano ainda não estava completamente domesticado. O processo de domesticação envolve a seleção dos melhores produtos – sejam eles frutos, sementes ou folhas – e otimiza o manejo para que as plantas possam ser cultivadas fora de seu contexto original (ver Pesquisa FAPESP nº 253). “Seres humanos já usavam e manipulavam a forma selvagem do milho, um capim chamado teosinto, por volta de 9 mil anos atrás no México”, contou o antropólogo Logan Kistler, do Instituto Smithsonian, Estados Unidos, e primeiro autor do artigo, na conferência de imprensa. Pouco depois o grão foi trazido para a América do Sul, onde o processo de domesticação teria continuado – mas sem a possibilidade de cruzamentos com a planta ancestral, como acontecia na zona de origem. “Era um milho muito parecido com o do México, mas com componentes genéticos particulares”, diz Freitas. Os pesquisadores já conheciam genes específicos ligados à domesticação, como aquele que permite que os grãos fiquem grudados na espiga em vez de cair pelo campo ou o que torna a palha mais maleável e fácil de retirar.

Fabio de Oliveira Freitas / Embrapa Milho encontrado no Vale Sagrado dos Incas, PeruFabio de Oliveira Freitas / Embrapa

“A população humana do oeste da Amazônia continuou o processo, eles tinham uma boa estrutura para a domesticação de plantas”, explica. Naquele momento, índios da região já tinham grande experiência no manejo e na seleção em uma variedade de espécies, como feijão, abóbora e mandioca. Há cerca de mil anos, uma segunda leva da planta, geneticamente diferente e já completamente adaptada ao consumo, veio do México e passou a ser plantada no norte da Amazônia. Estudos linguísticos indicam uma concomitância da expansão da língua arawak, com provável origem na região oeste do Amazonas, com termos específicos para o milho. “O encontro das duas levas pode ter acontecido no norte de Minas”, diz Freitas, voltando à origem de seu interesse pelo assunto.

“A história da domesticação do milho é um dos eventos evolutivos fundadores que tiveram um impacto enorme na vida e na história humanas”, disse Kistler. Freitas ressalta a importância de dois aspectos da conservação de um cultivo tão importante. Uma é a realizada pelos índios, que por milênios selecionaram, cuidaram e cultivaram o cereal, com um processo cuidadoso de seleção e adaptação ao ambiente. A outra é o banco de sementes da Embrapa, com capacidade para 700 mil amostras congeladas a 20 graus Celsius negativos, uma reserva estrategicamente essencial dos alimentos que formam a base da alimentação.

Artigo científico
KISTLER, L. et al. Multiproxy evidence highlights a complex evolutionary legacy of maize in South America. Science. v. 362, n. 6420, p. 1309-13. 14 dez. 2018.

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