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CIÊNCIA DE ALIMENTOS 

Microrganismos do sabor

Estudo determina quais bactérias influenciam as características de 11 tipos de queijo artesanal do Brasil

O Serrano, queijo de sabor intenso, é produzido de acordo com uma receita tradicional dos imigrantes da região Sul

Léo Ramos Chaves

Os queijos artesanais são produtos vivos. Por não passar pelo processo de pasteurização adotado na fabricação dos queijos em escala industrial, o leite cru, matéria-prima desses alimentos regionais, contém combinações únicas de diversas espécies de bactérias. As variações de gosto, consistência e aroma dos queijos decorrem das características do leite (que pode ser de vaca, cabra, ovelha ou búfala) e de diferentes técnicas de produção, com a contribuição de bactérias láticas que produzem ácidos e outras substâncias. É assim em qualquer lugar onde são fabricados esses produtos artesanais, resultantes do processo de fermentação natural do leite, sem o auxílio de aditivos externos. Um trabalho recente determinou a diversidade de bactérias láticas presentes em 11 tipos de queijos artesanais brasileiros, como o coalho, do Nordeste, o Canastra, de Minas Gerais, e o colonial, do Sul.

Pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade de Nápoles Federico II, da Itália, analisaram 578 amostras de queijos de cinco regiões do Brasil e encontraram 24 gêneros de bactérias, entre os quais predominaram Streptococcus, Leuconostoc, Lactococcus e Lactobacillus. Por meio do sequenciamento de DNA, identificaram 15 espécies de Lactobacillus, grupo de bactérias que produz substâncias associadas ao gosto, textura e aroma peculiares dos queijos. O estudo foi publicado em 26 de dezembro de 2018 na revista Food Microbiology.

“As combinações e proporções únicas de várias espécies de bactérias láticas podem ser usadas para reforçar a identidade dos queijos artesanais, ao lado da região em que são produzidos e dos métodos de fabricação”, diz o químico Anderson de Souza Sant’Ana, da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp, um dos autores do estudo e coordenador de um trabalho sobre queijos artesanais iniciado em 2013. Durante seu doutorado, a zootecnista Bruna Akie Kamimura, principal autora do estudo publicado na Food Microbiology, trabalhou em uma das vertentes da pesquisa, a análise da diversidade de microrganismos encontrados nos produtos.

Kamimura coletou amostras de queijos artesanais em mercados, feiras, cooperativas e produtores de Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco e Mato Grosso do Sul e complementou a coleta com produtos de outras partes do Brasil, enviados por colegas da própria Unicamp e de outras instituições. Em seguida, analisou as amostras ainda no Brasil, antes de passar um ano na Universidade de Nápoles, onde diferenciou geneticamente as bactérias de cada tipo de queijo.

Com métodos de produção semelhantes, os cinco tipos de queijos artesanais de Minas Gerais, o principal estado produtor, apresentaram diferenças no grupo de bactérias láticas do chamado pingo, soro remanescente da fabricação de queijo que é adicionado ao leite coletado no dia seguinte, matéria-prima para a produção de um novo lote do produto. As características como a casca espessa e a massa branca do queijo tipo Serro, produzido na serra do Espinhaço, nordeste mineiro, devem-se em parte ao predomínio de bactérias dos gêneros Streptococcus (42%) e Lactococcus (29%). Outros dois grupos de bactérias, Lactococcus (46%) e Lactobacillus (17%), atuando conjuntamente com variáveis ambientais, ajudam a definir o gosto mais suave ou mais ácido, de acordo com o tempo de maturação, do Canastra, uma especialidade da região serrana do sudoeste mineiro (ver quadro).

“As bactérias láticas são o coração dos queijos artesanais”, diz Júnio Cesar De Paula, pesquisador do Instituto de Laticínios Cândido Tostes da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), em Juiz de Fora, Minas Gerais, que não participou do estudo com os 11 queijos artesanais. “Elas promovem a fermentação da lactose, a produção de ácido lático e de substâncias que controlam a contaminação por outros microrganismos. Quanto mais ácido o queijo, menor o risco de contaminação.” As bactérias láticas geralmente morrem durante a maturação do queijo, embora algumas permaneçam por mais algum tempo no produto final, sem oferecer nenhum risco para os consumidores.

Léo Ramos Chaves

Defeitos na casca e no gosto
Os queijos artesanais são produzidos por pequenos produtores rurais de acordo com receitas tradicionais. No Brasil, estão sujeitos apenas à fiscalização sanitária de órgãos estaduais, mas não ao controle federal, o que permite a venda interestadual. Não há estatísticas precisas, mas estima-se que sejam produzidas cerca de 200 mil toneladas desse tipo de queijo por ano no país. Esse total equivale a quase 20% do 1,1 milhão de toneladas de queijos fabricados anualmente de forma industrial, segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Queijo (Abiq). O Brasil é o oitavo maior produtor mundial de queijos industrializados, em um mercado liderado pelos Estados Unidos, com 5 milhões de toneladas por ano, Alemanha, com 2 milhões, e França, com 1,8 milhão.

Segundo De Paula, produzir queijos com leite cru é um desafio contínuo, diferente da fabricação em larga escala que usa uma matéria-prima mais homogênea. Utilizada nas grandes indústrias, a pasteurização elimina não só agentes causadores de doenças, mas também as bactérias originais do leite, que, depois, são substituídas por linhagens padronizadas de microrganismos, resultando em produtos com gostos, aromas e textura mais uniformes. “Cada dia o leite cru, o clima e as condições de produção do queijo artesanal são diferentes”, diz De Paula.

Steve Gschmeissner/Science Photo Library | Dennis Kunkel Microscopy/Science Photo Library Lactococcus (à esq.) e Leuconostoc, dois gêneros de bactérias predominantes em queijos artesanais brasileirosSteve Gschmeissner/Science Photo Library | Dennis Kunkel Microscopy/Science Photo Library

Como o risco de contaminação por microrganismos causadores de doenças é constante, “o mapeamento microbiano de queijos também é útil para detectar microrganismos deteriorantes ou patogênicos que afetam negativamente a qualidade do produto”, observa Danilo Ercolini, pesquisador da Universidade de Nápoles que trabalhou com a equipe da Unicamp. “As condições de ordenha do leite e de produção dos queijos ainda variam muito no Brasil, mas em geral melhoraram”, diz De Paula. A ocorrência de bactérias patogênicas, como as do gênero Salmonella e Listeria monocytogenes, tornaram-se raras nos queijos, embora a contaminação por Staphylococcus aureus e por coliformes ainda preocupe, segundo o pesquisador da Epamig.

Mesmo quando o leite cru está isento de microrganismos patogênicos, a produção artesanal de queijo no Brasil tem de enfrentar outros tipos de problemas. Depois de percorrer 24 propriedades na serra da Canastra entre dezembro de 2016 e janeiro de 2017, a engenheira de alimentos Denise Sobral e outros pesquisadores da Epamig verificaram que os produtores ainda se inquietam com a variação na casca – eventualmente grossa, trincada, com manchas escuras ou brancas – e com o gosto indesejado – às vezes ácido, azedo ou amargo – dos queijos. Tais inconsistências são resultado de desajustes na fabricação e maturação do produto.

De acordo com estudo publicado por esses pesquisadores na edição de julho-setembro de 2017 da Revista do Instituto de Laticínios Cândido Tostes, da própria Epamig, apenas 4 dos 24 produtores seguiam o período mínimo de maturação, de 22 dias, exigido pela legislação estadual para tornar os produtos seguros para consumo. A maioria vendia os queijos ainda frescos. Apenas quando o produto se destinava a algum concurso, deixava os queijos maturarem por cerca de 15 dias. “Os produtores preferem vender logo os queijos porque muitos defeitos de consistência, no gosto ou na casca aparecem durante a maturação”, comenta De Paula.

Projeto
Uma abordagem metagenômica e de modelagem preditiva para o estudo da ecologia microbiana e segurança microbiológica de queijos artesanais brasileiros (nº 13/20456-9); Modalidade Bolsa de doutorado; Pesquisador responsável Anderson de Souza Sant’Ana (Unicamp); Bolsista Bruna Akie Kamimura Nascimento; Investimento R$ 170.454,23.

Artigos científicos
KAMIMURA, B. A. et al. Large-scale mapping of microbial diversity in artisanal Brazilian cheeses. Food Microbiology. v. 80, p. 40-49. jun. 2019.
SOBRAL, D. et al. Principais defeitos de queijos minas artesanais fabricados na região da Canastra. Revista do Instituto de Laticínios Cândido Tostes. v. 72, n. 3, p. 174-83. 2017.

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