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Resenha

A revolta de presos na Ilha Anchieta

Rebelião e reforma prisional em São Paulo – Uma história da fuga em massa na Ilha Anchieta em 1952 | Dirceu Franco Ferreira | Editora Revan | 304 páginas | R$ 58,00

Ao resgatar um evento esquecido no passado, que parece repousar confortavelmente no lado escuro da memória pública brasileira, o livro Rebelião e reforma prisional em São Paulo – Uma história da fuga em massa na Ilha Anchieta em 1952, do historiador Dirceu Franco Ferreira, desperta no leitor reflexões importantes sobre o debate que continua fervendo na ordem do dia em busca de respostas.

Para que servem as prisões? Quais os efeitos sociais e políticos da aposta no encarceramento, feita pelo poder público ao longo dos anos, na tentativa de controlar o crime? Por que os erros do passado continuam sendo reproduzidos nos dias de hoje? O livro de Ferreira volta seu olhar para trás sem nunca perder de vista a relevância de suas descobertas para compreender os tempos atuais e pensar o futuro.

O trabalho parte do levante ocorrido no Instituto Correcional da Ilha Anchieta em junho de 1952. Mais de 100 internos se rebelaram atacando guardas, roubando lanchas e canoas para tentar escapar do presídio, distante 700 metros do continente. No total, 129 presos conseguiram chegar às praias, sendo 108 recapturados nos dias que se seguiram, com mais 15 mortos e seis desaparecidos – talvez os únicos a obterem sucesso na fuga.

Para entender o episódio, Ferreira aciona diversas frentes de investigação. Discute desde a forma como a sociedade enxergava o problema na época, tanto o crime como a prisão, passando pela análise dos personagens principais da revolta: autoridades, guardas, presos, lideranças prisionais, entre outras figuras que gravitavam no entorno da rotina da ilha. Discorre também sobre a relação de poder entre os envolvidos na gestão do presídio, os resultados políticos da crise, como a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada na Assembleia Legislativa paulista, as reformas decorrentes no sistema penitenciário em São Paulo, sempre buscando refletir sobre os mecanismos sociais que contribuíram para a produção dessas ações.

Usa como fontes inquéritos e processos empoeirados dos arquivos oficiais, mas também revistas e jornais antigos, livros de personagens envolvidos com a crise, que oferecem olhares diversos e complementares sobre os acontecimentos.

Durante o trabalho, as questões teóricas surgem naturalmente, como a capacidade dos presos para articular uma ação coletiva, promovida em resposta às condições degradantes às quais eles estavam submetidos. Desde castigos corporais praticados pelos guardas, restrição de alimentos que promovia fome generalizada aos ganhos ilegais que esses funcionários obtinham com o trabalho dos presos, com a venda de peixes para o comércio local.

“[…] Pode-se perceber a ação social dos presos contra as autoridades prisionais como um movimento social e, nesse sentido, um fenômeno privilegiado para o estudo das relações entre Estado e Sociedade no mundo contemporâneo”, escreve Ferreira. Promovido por lideranças com participações pregressas em outras rebeliões, o levante seria uma forma de resistência ao processo de encarceramento, acelerando a transformação das políticas penitenciárias e estabelecendo novas maneiras de se enxergar e enfrentar o problema penitenciário.

A desativação definitiva do presídio ocorreria em 1955. Veio na esteira da crise política a aceleração das obras para a construção do Complexo Penitenciário do Carandiru, próximo à Penitenciária do Estado. Também é do período a criação da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté.

O Estado se transformava na tentativa de encontrar solução mais racional para o controle do crime. O fracasso das medidas demoraria algumas décadas para se revelar em toda sua dimensão. Basta lembrar que em outubro de 1992 ocorreu o massacre do Carandiru, onde 111 presos foram mortos pela polícia depois de uma rebelião.

No ano seguinte, no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté, estabelecimento que os presos acusavam de ser um antro de torturas, foi fundado o Primeiro Comando da Capital (PCC), que se fortaleceu com um discurso para a massa carcerária se unir em reação ao sistema opressor. Vinte e cinco anos depois, o PCC conseguiu criar, a partir dos presídios paulistas, uma ampla rede criminal, aumentando sua participação no mercado de drogas, com influência sobre unidades penitenciárias de todos os estados do Brasil.

Bruno Paes Manso é economista, jornalista, doutor em ciência política e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP).

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