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Autonomia Universitária

Ferramentas para planejar o futuro

Estabilidade no financiamento das universidades paulistas gerou aprendizado contínuo sobre a gestão de recursos

A autonomia financeira conquistada em 1989 obrigou as universidades estaduais paulistas a buscar soluções próprias para a gestão de recursos, mas garantiu liberdade para que propusessem abordagens inovadoras. Os primeiros anos de autonomia foram tumultuados: a situação econômica do país, com surtos inflacionários e oscilações bruscas nas taxas de crescimento, gerou instabilidade nos repasses do percentual de arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) determinados pelo decreto assinado pelo governador Orestes Quércia em fevereiro de 1989.

Reitor da Universidade de São Paulo (USP) entre 1990 e 1993, o engenheiro Roberto Leal Lobo recorda-se de dificuldades para manter a pontualidade do pagamento de salários. “Em várias ocasiões, o Tesouro não conseguiu fazer o repasse combinado e transferia apenas o necessário para não atrasar salários, acertando a diferença posteriormente”, recorda-se Lobo. Por diversas vezes, a USP teve de recorrer a empréstimos-ponte na Caixa Econômica Estadual ou no Banco do Estado de  São Paulo (Banespa) para honrar a folha de pagamentos – as instituições financeiras adiantavam o dinheiro contando que o repasse entraria em seguida. Joaquim J. de Camargo Engler, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) que era o coordenador de administração geral da USP na gestão de Lobo, conta que se responsabilizava pessoalmente pela devolução dos empréstimos à Caixa Econômica Estadual.

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A USP ganhou um alívio quando o então governador Luiz Antonio Fleury Filho aceitou honrar as parcelas de um empréstimo de US$ 165 milhões concedido no fim dos anos 1980 à universidade pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), utilizado em programas de pesquisa, compra de equipamentos e construção de prédios.

Nessa época, também surgiram inovações para racionalizar gastos. A principal delas, lembra o reitor Lobo, foi a criação de uma “moeda” dentro da USP, baseada nas frações do percentual do ICMS destinadas a cada unidade em anos anteriores. “Como a inflação era alta, não se falava em dinheiro: cada diretor, então, trabalhava com sua fração do ICMS. Criamos um sistema por meio do qual, se os recursos não fossem gastos em um mês, o diretor mantinha um crédito vinculado à sua fração e poderia requerer o dinheiro em valores atualizados quando precisasse.” Essa medida, segundo Lobo, teve um efeito notável no planejamento. “Havia o costume de gastar o dinheiro rapidamente antes que perdesse valor ou por receio de que fosse cortado. Com essa ‘moeda’, os diretores puderam poupar para investir na compra de equipamentos de que precisavam, tendo a garantia de que os recursos estavam preservados. E isso ajudou a reitoria a organizar suas contas, aplicando o dinheiro que sobrava e recebendo taxas melhores do que as da inflação.”

O panorama melhorou quando o percentual do ICMS, inicialmente fixado em 8,4%, foi elevado para 9% em 1992 e 9,57 em 1995. As universidades também criaram estratégias para lidar com oscilações da arrecadação. Em meados dos anos 1990, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desenvolveu um sistema para gestão dos recursos, reavaliando seu orçamento a cada três meses e criando medidas de contenção de gastos caso houvesse redução de repasses.

Os repasses do ICMS são a principal fonte de investimentos nas universidades paulistas, mas não a única. As instituições também incorporam recursos de agências de fomento à pesquisa, de convênios com empresas e instituições públicas ou provenientes de prestação de serviços, entre outros. A Unicamp, por exemplo, recebeu do Tesouro Estadual repasses de R$ 2,268 bilhões em 2018, mas também arrecadou R$ 728 milhões de outras fontes e investiu R$ 75 milhões de receitas próprias. No rol de recursos extras, R$ 220 milhões vieram do Sistema Único de Saúde, para custear o atendimento à população da região de Campinas no Hospital de Clínicas da universidade. Projetos e bolsas financiados por agências federais e estadual resultaram em uma liberação de recursos da ordem de R$ 333,4 milhões em 2018.

Entre 1995 e 2002, a arrecadação do ICMS girou entre 60 e 70 bilhões, em valores atualizados. Mas após 2003, acompanhando o crescimento da economia, o volume de recursos cresceu de forma consistente por 10 anos consecutivos – em 2014, a arrecadação bateu em R$ 117,5 bilhões. O aumento permitiu que as universidades ampliassem suas atividades. A USP criou um campus na Zona Leste de São Paulo em 2005 e incorporou a Escola de Engenharia de Lorena no ano seguinte. Em 2008, a Unicamp inaugurou um campus em Limeira, enquanto a Universidade Estadual Paulista (Unesp) passou a estar presente em 24 cidades, criando unidades experimentais em municípios como Registro, Itapeva, São João da Boa Vista, Ourinhos e Rosana.

A disponibilidade de recursos também permitiu a formação de reservas para equilibrar as contas em fases em que as transferências perdessem fôlego. Com o crescimento robusto da arrecadação e uma política criteriosa de gastos, o comprometimento do orçamento das universidades com folha de pagamento tornou-se um dos mais baixos da história. Em 2008, chegou a 77,3% na média das três instituições, o patamar mais baixo desde 1989, quando registrou 73,3%. A USP, à época dirigida pela reitora Suely Vilela, conseguiu reduzir o peso da folha de 84% dos repasses em 2007 para 76% no ano seguinte.

Nessa época, disseminou-se a percepção de que esse círculo virtuoso teria vida longa – e aumentou a pressão para que o dinheiro poupado fosse destinado a investimentos. Em 2013, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, sugeriu que as universidades usassem as reservas, que somavam R$ 6 bilhões à época, para gerar mais resultados.

Foram adotadas políticas de expansão de gastos, que não se limitaram a investimentos, mas também a despesas permanentes. Uma tese de doutorado defendida em 2016 por Alexandre Hideo Sassaki, da Faculdade de Economia e Administração da USP, debruçou-se sobre as políticas empregadas pela USP entre 2010 e 2013, durante a gestão do reitor João Grandino Rodas. Sassaki concluiu que a deterioração financeira observada no período, que levou a universidade a comprometer todo o repasse do Tesouro com a folha de pagamento, foi motivada pela criação de novos planos de carreira de servidores e pelo aumento da base de beneficiários de auxílio-alimentação, vale-refeição, entre outros. “O desequilíbrio foi causado pela implantação combinada das ampliações de gastos em curto período de tempo, sem a devida avaliação dos impactos cruzados das decisões e sem os devidos estudos dos efeitos financeiros a médio e longo prazos”, observou Sassaki na tese.

O comportamento da USP teve reflexo nas outras universidades estaduais. “Elas enfrentaram pressões corporativas para aumentos de gastos nas discussões do Cruesp [Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas] e acabaram cedendo a eles”, observa o físico José Roberto Drugowich, professor da USP e coautor do livro Os desafios da autonomia universitária (Paco Editoria, 2018), em parceria com Paulo Muzy.

A retração da economia e a queda brusca da arrecadação em 2015 produziram a maior crise financeira dos 30 anos de autonomia, obrigando as universidades a usar suas reservas. A USP promoveu dois planos de demissão voluntária para reduzir as despesas com funcionários, enquanto a Unicamp e a Unesp congelaram investimentos e adotaram políticas de contenção de gastos. A Unesp enfrenta dificuldades de caixa: houve atrasos no pagamento do 13º salário de professores e servidores em 2017 e 2018. Um ponto vulnerável da Unicamp e da Unesp é o crescimento dos gastos com servidores inativos. Quando a autonomia foi conquistada, em 1989, as duas universidades haviam sido criadas menos de 25 anos antes e o comprometimento dos gastos com inativos era inferior a 5% da folha – hoje o percentual de ambas supera os 30% e continua crescendo. “Em 2018, gastamos cerca de R$ 700 milhões para cobrir o rombo da folha de inativos e isso está ficando extremamente pesado para a universidade sustentar dentro de seu orçamento”, afirmou o reitor da Unesp, Sandro Valentini.

O atual reitor da Unicamp, Marcelo Knobel, afirma que a autonomia foi crucial para que as universidades encontrassem saídas para os problemas de governança. “Houve decisões que colocaram em risco as finanças das universidades e o resultado foi uma crise complexa, que tivemos de resolver”, disse. “Mesmo em crises, a autonomia mostrou que é possível superar momentos difíceis com discussões internas, planejamento e transparência sobre o que acontece aqui dentro.” No caso da USP, uma resolução aprovada pelo Conselho Universitário, na gestão do reitor Marco Antonio Zago, lançou as bases para que o descontrole não se repita: quando os gastos com pessoal excederem 80% dos repasses do ICMS, a universidade suspenderá aumentos reais de salário, criação de cargos e autorizações para horas extras, e quando passarem de 85%, o desequilíbrio terá de ser revertido nos dois semestres seguintes.

Para Roberto Leal Lobo, os resultados positivos da autonomia das universidades estaduais paulistas superam largamente os percalços enfrentados: “Produzimos uma quantidade muito maior de teses e artigos e reduzimos o número de docentes e servidores. Quem propiciou esse salto de qualidade foi a autonomia.” De acordo com Lobo, um aspecto mal colocado da autonomia envolve a relação entre as universidades e o governo. “Quando eu era reitor, sugeri ao governador Fleury que criasse um plano de metas mostrando que resultados a sociedade esperava das universidades em tempos de autonomia. Cheguei a enviar a ele um rascunho com ideias, mas não houve interesse em levar adiante”, conta. “É equivocado imaginar que as universidades são capazes de responder a todos os anseios da sociedade sem que haja uma baliza para isso.”

O teto e a competitividade dos salários

A autonomia permitiu que as universidades estaduais paulistas adotassem políticas de recursos humanos distintas das vigentes no funcionalismo público. Um exemplo aconteceu no início dos anos 1990, quando o Conselho Universitário da USP aprovou a contratação de professores estrangeiros, embora a Constituição só permitisse que brasileiros natos ou naturalizados ocupassem cargos públicos. O caso foi levado ao Supremo Tribunal Federal e a conclusão dos magistrados foi que a autonomia permitia tais contratações. “Hoje, qualquer professor estrangeiro pode prestar concurso nas universidades públicas, e não só na USP”, diz o físico José Roberto Drugowich.

Mas existem amarras que a autonomia não tem força para desatar. Se as universidades puderam criar planos de carreira próprios, tiveram de respeitar um teto salarial para os docentes, que não pode exceder os R$ 22,3 mil de vencimentos do governador do estado. Como o salário do chefe do Executivo teve reajustes abaixo da inflação nos últimos 10 anos, houve um achatamento dos ganhos dos professores no topo de carreira. Outro problema é que os salários das universidades estaduais se tornaram menos competitivos do que os das federais, cujo teto é atrelado aos vencimentos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, atualmente de R$ 39,2 mil mensais.

Para Elizabeth Balbachevsky, professora do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e estudiosa da profissão acadêmica, o descompasso dos tetos salariais não chega a ter impacto na atração de talentos para as universidades paulistas. “Quem quer fazer carreira na USP, na Unicamp e na Unesp em geral não está preocupado só com a questão salarial. São docentes interessados em fazer pesquisa e São Paulo oferece a eles condições muito mais robustas do que em outros estados, graças à presença da FAPESP”, ela explica.

Balbachevsky enxerga, contudo, outros efeitos deletérios. Com a progressão por meio de concursos, os docentes mais experientes às vezes atingem o teto salarial antes de chegar ao topo da carreira. Consequentemente, têm menos interesse em assumir cargos de chefia pelos quais não podem ser remunerados. “Isso não é bom para a universidade”, diz. “Com frequência a chefia de departamento é ocupada por docentes jovens, que não têm a liderança indispensável para dar impulso à vida acadêmica. Isso cria um descompasso entre a linha de autoridade institucional e a liderança acadêmica.”

Esta é a segunda reportagem de uma série sobre os 30 anos da autonomia financeira das universidades estaduais paulistas

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