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Autonomia Universitária

A construção do futuro

Decreto de 1989 criou um modelo original de financiamento que permitiu o crescimento extraordinário das universidades estaduais paulistas

O governador Orestes Quércia assinou o decreto da autonomia (íntegra ao lado) diante de reitores, como José Goldemberg, da USP, e do secretário de Ciência e Tecnologia Luiz Gonzaga Belluzzo

Cássio Vasconcellos / Folhapress

O arranjo jurídico e orçamentário que garantiu estabilidade no financiamento das universidades estaduais paulistas completou três décadas de funcionamento. No dia 2 de fevereiro de 1989, o então governador de São Paulo, Orestes Quércia (1938-2010), assinou o Decreto nº 29.598, que estabelecia a autonomia de gestão financeira para as universidades de São Paulo (USP), Estadual de Campinas (Unicamp) e Estadual Paulista (Unesp), reservando um percentual fixo de 8,4% da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para custear as três instituições. O Conselho dos Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp), criado dois anos antes, ficou encarregado de organizar a distribuição dos recursos – em um primeiro momento, a USP recebeu 4,46%, a Unicamp, 2%, e a Unesp, 1,94%.

O decreto de 1989 tornou-se um marco no sistema de ensino superior brasileiro por produzir um modelo capaz de sustentar e fortalecer três das maiores universidades de pesquisa do país, respeitando a liberdade de gestão e preservando o ambiente acadêmico da disputa por verbas com outros órgãos públicos e áreas de governo. Hoje, USP, Unesp e Unicamp respondem juntas por 35% de toda a produção científica nacional indexada na base de dados Web of Science. Curiosamente, as regras definidas naquele decreto são ainda hoje excepcionais, pois o modelo jamais vicejou fora de São Paulo. Nenhum outro estado adotou princípios semelhantes, tampouco as universidades federais chegaram a gozar de autonomia financeira. Também é notável que a regra se ampare em um simples decreto – cogitava-se que a Constituição Estadual ou a legislação ordinária tratassem do assunto, mas isso não aconteceu.

Reprodução Íntegra do decreto da autonomia publicado no Diário Oficial em 1989Reprodução

Mesmo assim, o modelo vem sendo reafirmado, ano a ano, nas leis orçamentárias aprovadas pela Assembleia Legislativa e foi chancelado por todos os governadores – dois deles, Luiz Antonio Fleury Filho e Mário Covas (1930-2001), ampliaram o percentual dedicado às universidades, que desde 1995 corresponde a 9,57% do ICMS. “Essa reafirmação também distingue São Paulo dos demais estados e mostra a importância que as universidades têm na sociedade paulista”, diz o linguista Carlos Vogt, reitor da Unicamp entre 1990 e 1994. “Ninguém até hoje ousou profanar esse santuário.”

A conquista da autonomia financeira pelas universidades estaduais paulistas se enquadra no contexto histórico da redemocratização do país e, em particular, da elaboração de uma nova Constituição Federal. O artigo 207 da Carta promulgada em 1988 estabelece “autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial” para as universidades e diz que elas “obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. O físico José Goldemberg, reitor da USP entre 1986 e 1990, lembra que a versão preliminar desse artigo desenhado na Assembleia Constituinte continha uma ressalva que comprometia ou ao menos postergava o seu objetivo. “O final do artigo informava que a autonomia seria implantada ‘na forma da lei’. Isso remetia a discussão para a legislação comum e adiava sua implantação, o que aconteceu, aliás, com muitos outros artigos da Constituição”, recorda-se. O reitor da USP aproveitou a proximidade com o então senador Mário Covas, sub-relator da Constituinte com quem trabalhara na gestão do governador André Franco Montoro (1983-1987), e convenceu-o da importância de remover o adendo e manter a autonomia como uma regra geral. “Da forma como foi aprovado, não era mais necessário regulamentá-lo”, conta Goldemberg.

O decreto da autonomia faz referência ao artigo 207. Mas a decisão do governador Orestes Quércia também teve razões particulares e conjunturais. A crise da década de 1980 produziu surtos de inflação alta e uma sucessão de planos econômicos que tentaram em vão controlá-la. Esse ambiente gerava perdas salariais e elas alimentaram greves que paralisaram as universidades estaduais paulistas em anos anteriores. “O governador sentiu que as pressões por verbas e reajustes seriam recorrentes. Ele não tinha intimidade com o ambiente acadêmico, mas, baseado no bom senso, teve a ideia de reservar um percentual da arrecadação e deixar para os reitores os bônus e os ônus de administrar esses recursos”, recorda-se Frederico Mazzucchelli, professor do Instituto de Economia da Unicamp, que era secretário de Economia e Planejamento do governo paulista. Segundo o economista, Quércia comunicou a ele sua ideia no meio de uma viagem de avião. “O governador me disse: ‘A gente dá o dinheiro para eles e acabou’.”

A agenda da pesquisa e das universidades ganhou força nos anos 1980 e era valorizada na Assembleia Legislativa, lembra Aloysio Nunes Ferreira

Mazzucchelli procurou o secretário de Ciência e Tecnologia Luiz Gonzaga Belluzzo, seu colega da Unicamp, e os dois passaram a trabalhar em uma proposta. “Curiosamente, a reação inicial dos reitores não foi favorável. Eles ficaram assustados e desconfiados. Apenas o reitor da Unesp Jorge Nagle ficou entusiasmado já no primeiro momento. Nossa briga foi mostrar aos reitores que aquilo era uma coisa importante”, lembra. Foi preciso também vencer vozes contrárias dentro do governo. O então secretário de Administração Alberto Goldman opôs-se à vinculação de recursos por considerar que ela impõe agendas de setores a governos democraticamente eleitos, mas foi voto vencido. Após várias rodadas de discussões com os reitores e secretários de governo, chegou-se à fórmula dos 8,4% do ICMS, que representavam a média do que as universidades haviam recebido nos três anos anteriores. “O reitor da Unicamp Paulo Renato Souza [1945-2011], que havia sido secretário da Educação anos antes, ajudou a fazer os cálculos”, recorda-se Goldemberg.

Em fevereiro de 1989, quando o decreto ficou pronto, o governador chamou os reitores a seu gabinete e oficializou o modelo. O geólogo Paulo Milton Barbosa Landim, que havia acabado de assumir o cargo de reitor da Unesp em substituição a Nagle, lembra que o governador mencionou a pressão das universidades como uma de suas motivações. “Ele foi claro em dizer que, por conta da autonomia didático-pedagógica que as universidades já detinham, não tinha ingerência no seu funcionamento. E considerou que, então, era melhor que a autonomia também fosse financeira e os reitores cuidassem também dos problemas dos professores e dos salários.”

Na opinião de Carlos Vogt, a discussão sobre os motivos do governador é secundária: “O importante é que havia um contexto que levou à autonomia e o governador tem o mérito de assinar o decreto. Isso é o que fica e seus desdobramentos são importantes até hoje para as universidades”. Vogt atribui o modelo a uma experiência particular do estado de São Paulo, que foi a criação da FAPESP, em 1962, apoiada à época em um fundo patrimonial formado pelo governo e na vinculação de 0,5% da arrecadação de impostos do estado para financiar a pesquisa científica. “A FAPESP nasceu de um movimento em favor da inteligência, da produção científica e cultural que permeou a Assembleia Constituinte de 1947. Isso criou um paradigma que diferenciou o estado e foi uma referência importante para que se estabelecesse o movimento no sentido da criação da autonomia financeira das universidades”, afirma o linguista, presidente da Fundação entre 2002 e 2007.

Não foi por coincidência, observa Vogt, que, oito meses depois do decreto de Quércia, a nova Constituição Estadual paulista ampliou de 0,5% para 1% a fração da receita tributária estadual destinada à FAPESP, incorporando o investimento em desenvolvimento tecnológico às atribuições da Fundação. “A agenda da pesquisa e das universidades ganhou força naquela época e era valorizada pelos deputados estaduais do PMDB, que eram maioria na Casa”, recorda-se o então líder do governo na Assembleia Legislativa Aloysio Nunes Ferreira, autor da emenda que ampliou o percentual de recursos para a FAPESP na Constituição paulista. Segundo ele, outras iniciativas em favor da ciência marcaram os governos Montoro e Quércia, como a criação da carreira de pesquisador científico e a revitalização dos institutos estaduais de pesquisa. “A redemocratização deu impulso às reivindicações da universidade. O governador Quércia, um político que ganhou expressão justamente na redemocratização, era sensível a isso”, afirma.

O efeito prático da autonomia é que as universidades puderam se organizar e planejar seu desenvolvimento. Segundo José Goldemberg, foi possível dar sequência ao esforço, que se iniciara em meados dos anos 1980, de reformular as carreiras de docentes e técnicos em moldes mais adequados para a universidade. Também acabou a necessidade de sair de “chapéu na mão” em diversos órgãos do governo para garantir recursos para as instituições. “Eu me lembro de ter de conversar com a Secretaria de Administração sobre as regras de pagamento de diárias e horas extras para motoristas que levavam diretores de unidades da USP do interior para São Paulo”, conta Goldemberg. Após o decreto, a Unicamp lançou seu Projeto Qualidade, que incentivou os professores a obterem, no mínimo, o doutorado. “Metade do corpo docente naquela época era de professores-mestres. Hoje são praticamente todos doutores”, observa Vogt. “Mesmo um ambiente de turbulência econômica, como o que se seguiu ao Plano Collor, em 1990, pode ser enfrentado pelas universidades com a garantia dos recursos.”

Alguns conflitos perduraram. A Unesp, a mais jovem e descentralizada das universidades estaduais paulistas, ressentia-se do quinhão do ICMS que lhe coube. “O cálculo foi feito com base no que as universidades haviam recebido nos três anos anteriores, mas a Unesp foi sacrificada porque pouco antes do decreto, em agosto de 1988, seus custos fixos aumentaram bastante com a incorporação de uma grande unidade, a Universidade Municipal de Bauru. E a média dos três anos não considerou isso”, lembra Landim. O problema foi atenuado com as decisões dos governadores Fleury e Covas de elevarem o percentual em 1990 e 1995, ainda que o acréscimo tenha sido distribuído entre as três universidades. “Foi a Unesp que esteve mais à frente dessas articulações”, diz o ex-reitor. Ele atribui à autonomia a consolidação da Unesp. “Tínhamos como espelho a USP e a Unicamp, que eram as duas melhores do país, e a estabilidade dos recursos nos ajudou a moldar a nossa qualidade.”

O decreto da autonomia financeira trazia uma recomendação que não foi seguida. Sugeria-se que as universidades não ultrapassassem com gastos de pessoal 75% dos recursos recebidos do Tesouro. Em anos recentes, o crescimento dos gastos com salários e a queda na arrecadação de impostos decorrente da crise econômica as obrigaram a utilizar reservas e a fazer cortes, porque o comprometimento com salários superou o total dos repasses. “Se há algo de que me arrependo foi não ter brigado para que a recomendação fosse uma obrigatoriedade”, afirma José Goldemberg. “Na época, achamos que ficaria estranho o governo nos obrigar a fazer algo no texto de um decreto que nos garantia autonomia.” Segundo o ex-reitor da USP, o comprometimento dos recursos com salários tornou-se um inimigo da autonomia universitária. “Para exercer uma gestão realmente autônoma, é preciso ter uma margem de recursos que permita ao reitor investir no rejuvenescimento da universidade e no investimento em áreas emergentes. Com a crise, os atuais reitores perderam muito dessa capacidade.”

Esta é a primeira reportagem de uma série sobre os 30 anos da autonomia financeira das universidades estaduais paulistas

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