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História

Prato cheio para historiadores

Hábitos alimentares são objeto de pesquisas que buscam compreender transformações econômicas e culturais em São Paulo e no Recife

Vendedora de galinha no centro de São Paulo, em 1910, época em que o governo começou a organizar o comércio de alimentos

Instituto Moreira Salles / Autoria de Vincenzo Pastore

Do domínio do fogo pelos primeiros seres humanos às redes de fast-food é possível identificar hábitos alimentares que fornecem pistas sobre o modo de vida em diferentes sociedades. Estudos recentes mostram que práticas de produção, comercialização e consumo de alimentos e bebidas foram capazes de moldar e responder a mudanças políticas, econômicas e culturais de cidades brasileiras entre os séculos XVIII e XX. Os trabalhos evidenciam como a história da alimentação, um campo de pesquisa relativamente novo, pode ajudar a analisar aspectos pouco contemplados pela historiografia tradicional, que passa ao largo de atos como o de comer. Nos últimos anos, explica Leila Mezan Algranti, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), novos estudos têm trazido à tona nuances locais de processos de urbanização e metropolização do país. “Trata-se de uma investigação mais profunda do que simplesmente descobrir o que as pessoas comiam no passado”, afirma a historiadora, uma das pioneiras da área no Brasil.

A prática de comer fora de casa é um bom exemplo de como a dinâmica econômica contribuiu para o surgimento de hábitos alimentares na cidade de São Paulo a partir do século XVIII. Com a intensificação das atividades comerciais e a abertura dos portos a partir de 1808, produtos como massas, queijos, embutidos e frutas secas passaram a entrar no cardápio dos paulistanos mais abastados, que tinham condições de consumi-los nas casas de pasto – uma versão ancestral dos restaurantes – e em botequins com perfil distinto daqueles frequentados por pessoas de menor poder aquisitivo. “A partir de 1820, as classes mais altas, que até então frequentavam pouco os espaços públicos, começam a se alimentar fora do ambiente doméstico, atraídas pela possibilidade de variar o menu do dia a dia e de vivenciar momentos de lazer e interação social”, explica a historiadora Rafaela Basso, que pesquisou o assunto em doutorado recém-defendido na Unicamp.

O período analisado por ela, entre 1765 e 1834, é marcado por profundas mudanças na capital paulista, como a restauração da autonomia administrativa, que durante 17 anos havia estado sob responsabilidade do governo do Rio de Janeiro. “A nova administração passou a reorganizar e incentivar o comércio, a pecuária e a produção agrícola”, informa Basso. “Na cidade, o pequeno comércio de alimentos ganhou impulso e começou a determinar novos significados para a alimentação paulista.” Na virada para o século XIX, diz a pesquisadora, a cidade já estava integrada a redes de comércio e abastecimento. Era a partir do porto de Santos que boa parte dos gêneros importados da Europa desembarcava em São Paulo, para atender aos gostos da elite e dos europeus recém-chegados.

O constante vaivém de pessoas nas ruas da capital da província provocou o desenvolvimento de uma estrutura capaz de atender suas necessidades, ressalta Basso, que investigou os primórdios do comércio ambulante de alimentos na cidade e o Mercado das Casinhas, primeiro espaço público paulistano dedicado ao comércio de produtos como milho, feijão, farinha e carne de porco. Documentos da Câmara Municipal analisados pela historiadora registram reclamações da população em relação ao lixo deixado nas vias públicas por vendeiros e quitandeiras, que aproveitavam o crescente fluxo de pessoas para comercializar seus produtos a céu aberto. Além de restos de carne e peixe jogados no chão, a obstrução da passagem de pedestres também motivava queixas.

Medidas voltadas para organizar o comércio de alimentos e conter a ação dos ambulantes só começaram a tomar forma em São Paulo no início do século XX, de acordo com o historiador Francis Manzoni, autor do livro Mercados e feiras livres em São Paulo (Edições Sesc, 2019), que analisa a criação desses espaços comerciais entre 1867 e 1933. “O crescimento demográfico de São Paulo, impulsionado pela chegada de migrantes europeus e de outras partes do país, motivou novas demandas de moradia, alimentação e transporte”, explica Manzoni. “Uma das prioridades do poder público foi organizar o abastecimento de alimentos da cidade.” A saída foi construir mercados para abrigar os comerciantes e, assim, tirá-los das ruas.

Na prática, só foram aceitos nos mercados públicos aqueles com condições de pagar taxas administrativas – e esses eram, na maioria dos casos, imigrantes europeus que já atuavam no ramo. Negros, “caipiras” e brancos pobres continuaram nas ruas, ilegalmente. Observou-se que o preço dos alimentos aumentou em razão do encarecimento da vida em São Paulo – um dos efeitos da valorização dos terrenos disponíveis na cidade e da cobrança de taxas de locação nos mercados e impostos sobre produtos específicos. A situação dos comerciantes só foi regularizada com a oficialização das primeiras feiras livres pelo prefeito Washington Luís (1869-1957), em 1914, ressalta Manzoni, em uma estratégia da prefeitura para controlar o comércio de alimentos cobrando taxas menores do que as dos mercados. A institucionalização das feiras, explica o pesquisador, permitiu aos comerciantes o pagamento de taxas mais razoáveis e a oferta de alimentos a preços mais convidativos do que aqueles dos mercados públicos. Manzoni não ignora o caráter higienista das políticas que estabeleceram os mercados públicos em São Paulo. “O crescimento promovido pela economia do café tinha como modelo ideal de civilização as grandes cidades europeias”, explica. “Para ‘limpar’ as ruas da capital, e tirar negros e pobres das calçadas, ideias eugenistas foram colocadas em prática.”

Acervo de Francis Manzoni Trabalhadores em pátio interno de mercado na rua 25 de Março: estruturas foram criadas para tirar comerciantes das ruasAcervo de Francis Manzoni

De acordo com Manzoni, naquela época faziam parte da dieta paulista alimentos como arroz, feijão, milho, mandioca, couve, carne de porco e carne-seca. Alguns eram básicos desde as expedições bandeirantes no século XVI. “O tripé da alimentação paulista – mandioca, feijão e milho – tem origem nas culturas indígenas. Os bandeirantes, em sua maioria formados por mestiços de portugueses com indígenas, aprenderam a sobreviver nas florestas e a se alimentar desses gêneros, facilmente disponíveis nas roças. Além disso, aprenderam a comer animais como tatu, paca, veado, macaco, cobra, larva e formiga, além de frutas silvestres.”

É somente na transição para o século XX que a cozinha paulista passa a ser incrementada com a presença de imigrantes europeus. Os italianos influenciaram em grande medida o uso de azeites, embutidos (como mortadela e salame), azeitonas, macarrão, polenta, linguiças, molho de tomate, pães, queijos e antepastos, enquanto os portugueses fixaram a criação e o consumo de carne suína e seus derivados. “Sem dúvida, a imigração diversificou os alimentos consumidos no Brasil, inclusive com o cultivo de gêneros que antes não eram sequer produzidos entre nós”, afirma Manzoni.

As transformações na cidade também atingiram as tabernas paulistas, locais de inspiração ibérica onde eram vendidas bebidas alcoólicas e petiscos. “As tabernas paulistas, um ramo dominado por portugueses, foram devoradas pelas sucessivas reformas urbanas e por uma trajetória de expropriações e especulação imobiliária”, afirma Daisy de Camargo, que tratou do assunto em sua tese de doutorado em história, defendida na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Durante viagem à Espanha, a historiadora surpreendeu-se ao constatar que parte das tabernas de Madri, criadas em meados do século XIX, seguia em funcionamento. “Decidi investigar como hábitos alimentares locais sobrevivem ao avanço da globalização”, explica Camargo, que se aprofundou no assunto em estágio de pós-doutorado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Os resultados da pesquisa estão publicados no livro Fale com eles – Uma leitura das tabernas da cidade de Madri a partir da história da alimentação (Alameda, 2019).

Camargo identifica, na cultura tabernal, resistência ao estilo de vida apressado e padronizado. O “cocido madrileño”, prato típico das tabernas de Madri, por exemplo, demora horas para ficar pronto e seu preparo aceita variações regionais de ingredientes. “Já a lógica do fast-food surge como resposta à pressa urbana. Para facilitar e agilizar a produção e o consumo, redes como o McDonald’s apostaram em cardápios com pouquíssimas variações”, observa. Para a historiadora, as tabernas de Madri perduram, entre outros motivos, por terem sido símbolos de resistência política em momentos difíceis da história espanhola. “A Tienda de Vinos, inaugurada em 1888 e ainda em funcionamento, não sobreviveu apenas ao McLanche Feliz”, sublinha Camargo. Antes disso, entre 1939 e 1975, foi local de enfrentamento da ditadura do general Francisco Franco (1892-1975), ao sediar reuniões de socialistas e sindicalistas que lutavam contra o regime.

Diferentemente das tabernas madrilenhas, que resistiram à padronização da comida, os hábitos alimentares dos moradores de pelo menos uma capital brasileira sofreram impacto dos Estados Unidos, no início do século XX. Foi o que ocorreu no Recife, a partir dos anos 1930, quando o chamado americanismo ganhou força, principalmente com o cinema de Hollywood e, na década seguinte, no auge da Segunda Guerra Mundial, quando bases militares norte-americanas se estabeleceram em capitais nordestinas. “A população da capital pernambucana travou contato com os norte-americanos que perambulavam pela cidade com uniformes vistosos, jipes e carteiras com muitos dólares”, conta o historiador Frederico de Oliveira Toscano, que tratou do assunto em tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo (USP). “Muitos moradores do Recife viam com desconfiança aqueles soldados que bebiam Coca-Cola no gargalo e uísque nos bares. Mas a suspeita cedeu lugar à admiração e logo a maioria passou a querer imitar os gringos”, explica.

Documentos da época analisados por ele mostram que em pouco tempo a elite recifense aprendeu novas formas de festejar e receber convidados em casa: os banquetes formais em torno da mesa de jantar foram substituídos por coquetéis ao estilo americano, em que eram oferecidos canapés para se comer com os dedos. Os sanduíches, uma invenção britânica popularizada pelos norte-americanos, também começaram a ser servidos. “Era possível encontrar cachorro-quente em quermesses e festas populares”, informa Toscano, que passou seis meses nos Estados Unidos pesquisando documentos em Washington. Lá, encontrou relatórios militares de abastecimento, com dados sobre os produtos enviados ao Brasil.

Na avaliação de Toscano, a história da alimentação do Recife contribui para a compreensão da formação cultural tanto das elites quanto das camadas populares. “É uma maneira de evidenciar como hábitos alimentares locais foram modulados por culturas estrangeiras. Trata-se de promover uma visão crítica do quanto nossa sociedade pode ser influenciada a partir do que se coloca na mesa”, observa Toscano. A história da alimentação cumpre outro papel importante, ressalta Manzoni. “O de colocar holofotes sobre figuras esquecidas pelos livros de história, como feirantes e vendedores ambulantes.”

Campo recente
Estudos sobre a história da alimentação ganharam força no Brasil a partir da década de 1990

Os primeiros estudos em história da alimentação datam de meados dos anos 1960, fruto do trabalho de historiadores europeus, como os franceses Jean-Louis Flandrin (1931-2001) e Fernand Braudel (1902-1985). No Brasil, a área ganhou força a partir do final da década de 1990, com a publicação de uma revisão da literatura científica nos Anais do Museu Paulista, em 1997. No artigo, os historiadores Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses e Henrique Carneiro, ambos da USP, apresentam algumas das propriedades que caracterizam a história da alimentação como campo de pesquisa.

“A historiografia sobre o Brasil não deixou de levar em conta a alimentação, mas quase sempre como apêndice”, escreveram os autores, citando como exemplo a obra Caminhos e fronteiras (1957). Nela ao
tratar da expansão territorial dos bandeirantes, o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) dedica um
capítulo à civilização do milho.“A história da alimentação ainda é um território a descobrir”, concluíram.
O artigo tornou-se um marco no país, afirma a historiadora Leila Mezan Algranti, da Unicamp. “Vinte e três anos depois, ainda é bastante citado. Meneses e Carneiro ajudaram a abrir caminho para fazer da alimentação o principal objeto de estudo em alguns programas de pós-graduação”, diz ela.

De acordo com Algranti, a abordagem histórica da alimentação está hoje consolidada no país, fornecendo pistas para melhor compreender, por exemplo, formas de convivência entre diferentes classes sociais e manifestações culturais e religiosas. “Analisando aspectos como a produção e o consumo de alimentos também é possível investigar fatores econômicos e políticos.” Segundo Algranti, no Brasil os principais grupos de pesquisa nessa área concentram-se em instituições como USP, Unicamp, Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e as universidades federais do Paraná (UFPR), do Pará (UFPA), de Minas Gerais (UFMG) e de São Paulo (Unifesp).

Projetos
1.
Yes, nós temos Coca-Cola: Práticas e sociabilidades dos Estados Unidos na alimentação do Recife (1930-1950) (nº 15/02436-6); Modalidade Bolsa de doutorado; Pesquisador responsável Henrique Soares Carneiro (USP); Beneficiário Frederico de Oliveira Toscano; Investimento R$ 186.068,70.
2. História da alimentação e cultura material: Uma leitura histórica das tabernas de Madri (nº 12/12883-1); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Jaime Rodrigues (Unifesp); Bolsista Daisy de Camargo; Investimento R$ 229.120,58.

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