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Carta da editora | 289

Ciência, substantivo feminino

A ciência moderna e seus notáveis avanços estão muito associados a ideias e pesquisas desenvolvidas por homens. Embora essa percepção seja imprecisa, não é incorreta. Como qualquer atividade humana, a ciência está inserida na estrutura social vigente, organizada a partir da perspectiva masculina.

Londa Schiebinger, professora de história da ciência na Universidade Stanford, identifica três fases na incorporação das mulheres à ciência. A primeira é a representatividade – mulheres ocupando postos de trabalho. A segunda é a mudança da cultura científica, isto é, lidar com questões como assédio e maternidade. A terceira é uma mudança metodológica, incorporando as questões de gênero, quando pertinentes, ao fazer científico.

Apesar de restrições e dificuldades, mulheres vêm trazendo grandes contribuições para a ciência. Entre os exemplos mais conhecidos estão a física polonesa Marie Curie (1867-1934), a química britânica Rosalind Franklin (1920-1958) e a psiquiatra brasileira Nise da Silveira (1905-1999). Um esforço tem sido feito para resgatar a memória dessas pioneiras, assim como para dar destaque àquelas atuantes hoje e cujo trabalho não obtém visibilidade. Um exemplo recente foi o de Donna Strickland, canadense que recebeu o Nobel de Física em 2018 e que não se qualificava, até então, a ter um verbete próprio na Wikipedia porque na análise de um editor do site faltava ao seu trabalho cobertura por fontes confiáveis. À época, apenas 18% das biografias do site eram sobre mulheres.

Hoje, as mulheres já compõem boa parte da comunidade científica. No Brasil, superam os homens em número de doutorados defendidos por ano. O país também é crescentemente equânime quando se analisa o gênero de autores que publicam artigos científicos em revistas da base Scopus: entre 2014 e 2018, no país, contaram-se 195 mil autores do sexo masculino e 155 mil do feminino, uma relação de 0,8 mulher para cada homem (no período de 1999 a 2003, a proporção era de 0,55). Entretanto, como mostra reportagem de capa à página 26, as mulheres cientistas seguem em desvantagem na hora de ocupar cargos de maior poder em universidades, instituições de pesquisa e agências de fomento. E a média bastante positiva esconde grandes desigualdades de gênero nas diferentes áreas de conhecimento: enquanto a enfermagem é majoritariamente feminina, na ciência da computação a proporção não chega a 0,25.

Entre outros desafios, as mulheres precisam, constantemente, provar que são tão ou mais capazes do que os homens, enfrentando assédio moral e, às vezes, sexual; contornar os custos profissionais implicados na maternidade; e conquistar espaço para questões científicas decorrentes de sua condição feminina, apresentando problemas e perspectivas que enriquecem a ciência como um todo.

Exemplos não faltam. Na área da saúde, a pesquisa básica costuma usar como modelo animais machos, ignorando diferenças fisiológicas entre os sexos, como a influência de hormônios em tratamentos medicamentosos. Na demografia, a inclusão como objeto de estudo de questões como a violência doméstica tem importantes implicações em debates sobre políticas públicas em diversas áreas. A primeira reportagem que compõe a capa desta edição se dedica ao impacto da presença de mulheres na ciência e da discussão sobre gênero nos resultados de pesquisas científicas; a segunda traz números positivos em termos de avanços na representatividade e ao mesmo tempo mostra que ainda há muito a ser feito.

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