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Resenha

Em homenagem a frei Veloso

Ermelinda Moutinho Pataca e Fernando José Luna (org.) | Edusp | 448 páginas | R$ 60,00

A ignorância faz a ruína de muitos Estados. Ideias como essa, de frei José Mariano da Conceição Veloso (1742-1811), apoiam as análises densas reunidas na obra que homenageia os 200 anos da morte de frei Veloso e sua atuação na Tipografia do Arco do Cego, em Lisboa.

O franciscano naturalista e agrarista de destaque na coroa portuguesa é conhecido especialmente no Brasil por sua Florae fluminensis, de 1790, cuja publicação do texto completo só data de 1881, no volume V dos Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Para os autores de Frei Veloso e a Tipografia do Arco do Cego, os obstáculos técnicos, científicos e políticos que impediram a publicação da Florae fluminensis à época remetem diretamente as tentativas frustradas à origem da Casa Literária do Arco do Cego.

O livro compreende quatro partes: o tempo de frei Veloso, sua obra, a Tipografia e a circulação de conhecimentos, além do apêndice com o catálogo das obras da Arco do Cego transferidas para a Imprensa Régia em 1804. A atenção especial às atividades do frade no universo editorial a serviço da coroa portuguesa não se restringe às análises sobre sua trajetória e decisões editoriais na Arco do Cego, entre 1799 e 1801.

“Frei Veloso viajante” abre a segunda parte do livro. Amplia as viagens filosóficas para além das coordenadas por Domenico Vandelli (1735-1816). Problematiza a erudição dos franciscanos, os engenheiros e militares desenhadores, o ensino de história natural. Assim como o texto sobre o seminário de Olinda e frei José da Costa Azevedo, primeiro diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, em 1818, que evidencia a circulação de personagens e trajetórias não interrompidas na continuidade dos processos educacionais e científicos nos territórios do que hoje é o Brasil. Dessa seção emergem os autores e obras publicadas: a matemática e a cartografia, a química e a botânica, a predominância das obras de “ciências e artes”, na Casa Literária.

A terceira parte trata das práticas da Casa: plano editorial, fabricação e uso dos tipos de impressão, uso do til – sinal diacrítico –, que denunciava a influência francesa. Na quarta parte, “Uma história de traduções”, é outra leitura sobre a Tipografia, que situa os portugueses, coletas e escritos nas redes de circulação de conhecimentos. Dos detalhes dos títulos e páginas de rosto surge o talento do narrador nos curtos prefácios de muitas obras.

O último artigo associa frei Veloso aos go-between de Simon Schaffer e nos conduz de volta aos primeiros textos de “Frei Veloso e seu tempo”. Aí o frade e a Casa se inserem no contexto das políticas editoriais a serviço da exploração colonial. Os autores esmiuçam as complexidades, contradições e alcance dessas iniciativas. A exemplo da inadequação dos livros – “fragmentos e objetos de uma ciência modernizadora” – enviados para Luanda, no artigo que aborda o Iluminismo e projetos coloniais em Angola, entendidos no “contexto das lógicas de poder às carreiras individuais do Império colonial, sustentado pelo controle da violência, organização do tráfico e intensificação da exploração africana”.

Contrapondo política editorial, censura, disputas, descumprimento de ordens, publicações “por ordem superior” imprecisa, que dessacralizavam o poder régio, outro texto adentra carreiras individuais, conflitos de poder entre agentes da coroa. O “sentido político-estratégico” das publicações da Arco do Cego e seu fim fizeram parte das estratégias contraditórias de busca para “controlar e dirigir um público emergente”, ainda nas tentativas de salvar o Antigo Regime.

São inúmeras as fontes arquivísticas de Portugal e Brasil e ampla a bibliografia por todo o livro. As notas de rodapé merecem leituras atentas. Ampliam os textos, fornecem outras perspectivas para novas pesquisas. O livro ainda se distancia das histórias definidas pelas fronteiras dos países atuais e sugere revisitar questões, a exemplo dos sentidos do termo luso-brasileiro. Portugueses, embora nascidos no que viria a ser o Brasil, pensaram o Império colonial escravocrata como um todo, com inadequações e prioridades. Independentemente de onde nasceram, os homens escolhidos do Império, quando necessário, circularam, assumiram postos de direção, foram professores, editores, e mesmo, foram descartados.

Maria Margaret Lopes é professora convidada dos programas de pós-graduação do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) e de Ciência da Informação
da Universidade de Brasília (UnB).

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