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Pesquisa na quarentena

“O primeiro trabalho de campo estava programado para abril. Mas veio a pandemia”

O botânico Rafael Silva Oliveira, da Unicamp, fala da frustração de parar um projeto de pesquisa no Cerrado logo no início e do desafio de dar aulas a distância

Sem ir à universidade, pesquisador volta os olhos para as flores da espécie Gomphrena celosioides nas calçadas do bairro do Cambuí, em Campinas

Rafael Silva Oliveira / Unicamp

Coordeno um projeto temático da FAPESP que teve início em 2019, em colaboração com pesquisadores do Reino Unido, da Espanha e dos Estados Unidos, e tínhamos planejado o primeiro grande trabalho de campo em abril. É um projeto que busca aprofundar o conhecimento sobre a capacidade de recuperação do Cerrado brasileiro, a savana mais biodiversa da Terra. Nossos parceiros internacionais viriam ao Brasil, alguns trazendo seus alunos, e passaríamos um mês no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, discutindo o andamento do projeto e instalando torres com sensores capazes de avaliar os fluxos de carbono, água e energia entre a atmosfera e os ecossistemas. No início de março, nos demos conta de que a situação era grave, quando nossos colaboradores da Universidade de Exeter, na Inglaterra, receberam a recomendação de não viajar e cancelaram a vinda. Ao mesmo tempo, o parque da Chapada dos Veadeiros foi fechado, como aconteceu com outras unidades de conservação, por causa da pandemia. Há populações tradicionais na região, como os calungas, que estão vulneráveis e não contam com uma boa infraestrutura de saúde. A circulação de pessoas pode levar a doença até eles.

A coleta de dados seria, na prática, o ponto de partida da pesquisa. Um dos principais objetivos do projeto é avaliar até que ponto as florestas tropicais secas e savanas, que cobrem 35% do território e abrigam mais da metade da diversidade de plantas do país, têm capacidade de se recuperar após vários tipos de distúrbios. Esses ecossistemas naturais fornecem uma série de serviços, como a oferta de alimentos, a segurança hídrica e várias atividades econômicas. Queremos entender como a diversidade das comunidades de espécies vegetais pode influenciar sua capacidade de recuperação. A compreensão da resiliência do Cerrado às mudanças climáticas e ao desmatamento é fundamental para poder facilitar sua restauração no futuro.

A situação é frustrante e desafiadora. Nossa pesquisa depende de coleta de dados a campo e sinto que o projeto vai atrasar bastante, porque não sabemos quando vamos conseguir instalar a infraestrutura. As torres serão construídas em uma área de vegetação nativa, em outra de vegetação restaurada e em uma área de pastagem, seguindo uma metodologia desenvolvida na Inglaterra. O tamanho dessas torres depende do tipo de vegetação. Como o Cerrado é baixo, elas deverão ter em torno de 7 ou 8 metros de altura. Vamos colocar uma série de sensores que monitoram variáveis microclimáticas, a quantidade de CO2 e de vapor-d’água, a velocidade e a direção do vento, para avaliar como a atmosfera está interagindo com aquela vegetação. Com o projeto parado, o jeito é aproveitar o tempo para fazer revisões da literatura sobre alguns temas do projeto e discutir ideias que não dependam da coleta de dados.

Caio Mattos / Unicamp Em uma madrugada de quando era possível ir a campo, estudantes fazem medições fisiológicas em plantas da chapada dos VeadeirosCaio Mattos / Unicamp

Com a pandemia, também mudou muito a minha rotina de trabalho na Unicamp. As aulas presenciais na universidade foram suspensas no dia 12 de março. Tem sido um desafio promover o ensino a distância. Nem os docentes nem os alunos estavam preparados, é um processo de construção. Conversamos muito com os alunos para entender as dificuldades e aperfeiçoar processos.

Sou responsável por uma disciplina, introdução à ecologia, que é ministrada no primeiro semestre do curso de ciências biológicas. Divido o meu tempo gravando videoaulas e fazendo reuniões on-line com grupos de alunos. É uma situação triste, porque a disciplina é dinâmica, com muitas aulas de campo que envolvem bastante os alunos. Estamos fazendo aulas teóricas e torcendo para conseguir fazer alguma atividade de campo mais adiante. Calculo que uns 15% dos alunos têm dificuldades em acessar a internet, o que atrapalha a possibilidade de dar uma aula ao vivo. Esse foi o primeiro ano em que a Unicamp recebeu alunos do vestibular indígena. Alguns desses estudantes voltaram para suas comunidades, inclusive na Amazônia, e têm dificuldade de acesso. Os dois alunos indígenas dessa turma têm celular, mas nem sempre conseguem acessar a internet. O jeito é disponibilizar as videoaulas em uma plataforma, o Google Classroom. Aí, os alunos têm a semana inteira para assistir quando puderem. As reuniões on-line com pequenos grupos de alunos ajudam a tirar dúvidas e a auxiliá-los nos estudos dirigidos.

Apesar das frustrações com o andamento das pesquisas, tenho notado muitas mudanças positivas. Cientistas, que andavam desprestigiados, voltaram a ter voz. Têm trabalhado com valentia e dedicação para entender a doença. Passo bastante tempo em casa e tenho encontrado mais tempo para tocar flauta, ouvir música e aproveitar para refletir sobre novas ideias de pesquisa. Vejo o quanto a pressa e as burocracias do cotidiano atrapalham nossa capacidade criativa. Estou adorando ver as floradas de plantas silvestres nas calçadas da cidade. São impressionantes, brotam do asfalto e de pequenas frestas do calçamento. Como o fazem? De onde retiram os nutrientes e água necessários para sua sobrevivência? Por que não as deixamos florescer sempre? A “limpeza” urbana destrói vidas, enterra flores. Nossa visão utilitarista da natureza tem nos mantido cegos diante da beleza e diversidade da vida. Especialmente aqui no Brasil, ironicamente o país com a maior diversidade de vida do planeta é o que mais destrói vidas, florestas e savanas. Gostaria que algumas mudanças permanecessem – que as cidades se mantivessem mais pacíficas, com mais plantas nativas, menos carros e mais silêncios.

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