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Comunicação

Laços em recuperação

Estudo registra altos índices de confiança da sociedade na ciência em meio à pandemia

Alexandre Affonso

Se há alguns meses a ciência sofria com a desconfiança de parte da população brasileira (ver Pesquisa FAPESP nº 284), hoje ela é vista pelo público como a principal ferramenta para combater a Covid-19, infecção causada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2) ainda sem tratamento específico. Os reflexos dessa mudança na percepção da sociedade podem ser observados em um levantamento publicado em abril e realizado em 10 países, entre eles o Brasil, sobre o índice de confiança pública em atores políticos, científicos e sociais no atual contexto de pandemia. Executada pela agência global de comunicação Edelman, a pesquisa ouviu 10 mil pessoas, mil de cada país, e mostrou que, para 85% dos entrevistados, é preciso agora ouvir mais os cientistas e menos os políticos no que diz respeito a assuntos sobre o novo coronavírus. No Brasil, essa porcentagem chegou a 89% das pessoas ouvidas.

Os cientistas também aparecem como a fonte mais confiável de informação sobre a Covid-19 para 91% dos entrevistados brasileiros, seguidos de médicos pessoais (86%). No mundo, organizações médicas internacionais, como o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), aparecem como fontes mais confiáveis para 75% e 72% dos entrevistados, respectivamente. Autoridades governamentais receberam 48% das indicações de confiança no geral; e 53% no Brasil. Ao mesmo tempo, no mundo, 74% afirmaram que os governos e as autoridades médicas deveriam compartilhar mais informações sobre novas descobertas científicas sobre o Sars-CoV-2 e, para 69%, essas informações deveriam tratar de avanços na obtenção de uma vacina contra o vírus.

Na avaliação do biólogo Atila Iamarino, que há 13 anos atua como divulgador da ciência na internet, os resultados sugerem que a ciência está recuperando parte do prestígio outrora perdido, em maior ou menor grau, em sociedades do mundo todo, inclusive no Brasil. “Em tempos de crises de saúde, como a que estamos vivendo com o novo coronavírus, é natural que as pessoas busquem respostas rápidas e concretas da ciência”, diz. “Os pesquisadores estão atendendo a essa demanda, seja por meio de pesquisas com foco no desenvolvimento de uma nova vacina ou na obtenção de uma estratégia de tratamento contra a doença, seja por esclarecimentos e orientações sobre como lidar com o vírus em entrevistas na mídia e na internet.” Esse engajamento também tem como um de seus reflexos o aumento  recente no número de cientistas que se tornaram colunistas em alguns dos principais meios de comunicação do país.

Essa demanda social, contudo, não é um processo isento de efeitos colaterais. Segundo o biólogo, ela está ligada, em grande medida, à ansiedade e à insegurança associadas à falta de uma estratégia comprovadamente segura e eficaz contra a nova doença. “Há um impulso primário das pessoas em se apegar a qualquer coisa que as ajude a restabelecer a sensação de controle sobre suas próprias vidas. Em uma situação de pandemia, esses sentimentos abrem caminho para uma cobrança mais intensa por respostas rápidas da ciência e também pela busca desesperada por alternativas que se apresentem como possível solução para o problema, como um protocolo, um ritual ou um medicamento ‘milagroso’”, comenta. Esse comportamento ficou evidente no frisson a respeito das supostas potencialidades da hidroxicloroquina, apesar da falta de estudos científicos que comprovem sua eficácia em pacientes com a Covid-19. Iamarino sugere ainda que esse comportamento não é exclusivo do público. “Mesmo alguns cientistas estão se apegando a fórmulas rápidas”, destaca o divulgador de ciência.

Para o filósofo Marcos Nobre, pesquisador e atual presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a pandemia de Covid-19 pode ser uma oportunidade para os cientistas mostrarem à sociedade como a ciência funciona e por que ela é importante para o desenvolvimento dos países. “A pior coisa que os cientistas podem fazer agora é tentar buscar a adesão da sociedade com base na falsa promessa de que terão uma resposta para a doença em um tempo determinado”, diz.

O físico Peter Schulz, da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e secretário-executivo de comunicação da mesma instituição, compartilha dessa preocupação. Para ele, é importante que os cientistas deixem claro que a ciência não é uma prateleira de resultados prontos e produtos mágicos. Pelo contrário. “O momento é de ser transparente e reforçar a ideia de que a ciência é um processo lento e complexo, baseado em métodos, e seus resultados precisam ser submetidos à avaliação de outros cientistas da mesma área para serem validados – e que esses aspectos constituem algumas das suas principais qualidades.”

A crise do novo coronavírus também pode servir para a ciência deixar claro ao público que seus resultados são uma consequência direta dos investimentos em pesquisa feitos por cada país ao longo de décadas. Nobre cita o caso do sequenciamento do genoma humano, concluído em 2003. “As sociedades, à época, não perceberam a aplicação dos resultados desse esforço de pesquisa”, explica. “No entanto, graças aos investimentos feitos nessa área há cerca de 30 anos e à criação de uma ampla rede de colaboração nesse sentido, os pesquisadores hoje contam com métodos e ferramentas que lhes permitem sequenciar o genoma do novo coronavírus e entender melhor seu comportamento, o que poderá ser fundamental para o desenvolvimento de uma vacina ou de um fármaco para a doença.”

A ciência, ele diz, tem um passado de realizações que legitima a pesquisa básica como fonte de novas aplicações e tecnologias. “É preciso aproveitar o momento para mostrar como a pesquisa guiada pela curiosidade intelectual dos pesquisadores pode ajudar a preparar a sociedade para problemas que ainda nem existem.”

Para Nobre, que também é professor de filosofia na Unicamp, um dos fatores que parecem contribuir para que a ciência recupere parte da confiança da sociedade envolve o fato de o discurso científico, nos últimos meses, ter se dissociado do poder político. “A sociedade tem cada vez mais clareza de que a realidade da pandemia é muito diferente, e muito mais grave, do cenário pintado por alguns representantes políticos”, comenta o filósofo. “No Brasil, os atos e discursos do presidente Jair Bolsonaro contrários às recomendações científicas e aos modelos epidemiológicos foram decisivos para que houvesse uma ruptura entre a ciência e o poder político”, diz.

Os reflexos desse fenômeno podem ser observados na adesão de parte significativa da população à estratégia adotada no mundo de distanciamento social para conter a transmissão do vírus. “Enquanto o presidente insiste na ideia de restabelecer a atividade econômica no país, boa parte da população continua em casa e, quando sai, o faz de máscara. Isso significa que as pessoas, inclusive a maioria esmagadora dos governadores, estão mais dispostas a confiar em recomendações baseadas em evidências científicas do que no discurso do chefe de Estado.”

Por sua vez, a falsa dicotomia criada pelo governo federal entre a implementação de estratégias que contenham o avanço do novo coronavírus e a preocupação com a recuperação econômica ajudou a gerar um novo tipo de polarização política no país. Isso teria sido decisivo para o aumento recente dos ataques e ameaças a pesquisadores, jornalistas e divulgadores de ciência nas redes sociais quando estes passaram a defender a adoção de medidas de distanciamento social e paralisação de atividades determinadas por governos estaduais e municipais, na contramão do discurso federal.

Outro aspecto importante no levantamento realizado pela Edelman envolve a proliferação de notícias falsas, hoje mais conhecidas como fake news, sobre o novo coronavírus. No estudo, 74% dos entrevistados se disseram preocupados com a propagação de informações falsas relacionadas ao Sars-CoV-2. Ao mesmo tempo, 45% afirmaram ter dificuldades para identificar dados confiáveis sobre esse assunto. A OMS já havia manifestado preocupação e chamado a atenção para a disseminação massiva de desinformação, mentiras e rumores sobre a pandemia, caracterizando esse fenômeno como “infodemia”.

As redes sociais constituem a principal ferramenta usada para espalhar fake news, sendo o movimento contra a vacinação um dos mais atuantes. Nos Estados Unidos, um estudo publicado em maio na revista Nature sugere que páginas no Facebook que propagam conteúdos contra a vacinação tendem a ter poucos seguidores, mas são mais numerosas do que as a favor da vacinação, e costumam estar vinculadas a discussões em outras páginas, como aquelas de associações de pais em escolas – cuja posição sobre a vacinação tende a variar. Por outro lado, as páginas que explicam os benefícios e os princípios científicos das vacinas estão vinculadas a redes desconectadas desses e outros atores envolvidos na discussão.

Em um cenário em que a falta de uma vacina é justamente o principal problema, esses grupos trabalham para readequar seu discurso, de modo a adaptá-lo à realidade da pandemia do novo coronavírus. Segundo Dayane Machado, doutoranda do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, que estuda os movimentos antivacina na internet, uma das estratégias usadas por esses grupos é buscar associar a Covid-19 a teorias da conspiração envolvendo países como a China ou grandes empresas farmacêuticas, que teriam fabricado o vírus para depois vender e lucrar com uma vacina. “Há também a narrativa de que o novo coronavírus seria uma farsa para tentar convencer as pessoas sobre a importância das vacinas usadas contra as outras doenças”, explica a pesquisadora.

Entrevista: Dayane Machado
     

Em muitos casos, esses grupos se engajam em plantar dúvidas sobre o discurso oficial, sugerindo a existência de interesses ocultos por trás das orientações dos governos, das organizações de saúde internacionais, dos resultados de estudos publicados em revistas científicas e de notícias veiculadas na imprensa. “O objetivo é distorcer a realidade e promover um sentimento de desconfiança acerca do discurso oficial para, em seguida, apresentar o que afirmam ser ‘a real verdade’ dos fatos.” Alguns pesquisadores que estudam esse movimento, no entanto, alertam que ele pode comprometer os esforços de imunização contra o Sars-Cov-2 caso os cientistas consigam desenvolver uma vacina nos próximos anos.

Outra estratégia usada por esses grupos, segundo Machado, é a de se valer da credibilidade de instituições reais para legitimar informações falsas. “Há vários casos de boatos baseados em estudos inventados, muitas vezes atribuídos a pesquisadores que não existem atuando em instituições respeitadas, como a Universidade Harvard, nos Estados Unidos, por exemplo”, conta. Estudo recente realizado por pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) verificou tendência semelhante no Brasil. Eles analisaram denúncias e notícias falsas recebidas pelo aplicativo Eu Fiscalizo entre 17 de março e 10 de abril. Constataram que 71,4% das mensagens falsas difundidas no aplicativo de mensagem WhatsApp citam a Fiocruz como fonte de textos ou estudos sobre a Covid-19. A OMS e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), juntas, somam 2% das instituições mencionadas como fonte de informações falsas sobre cuidados e medidas contra o Sars-CoV-2 em mensagens disseminadas por meio do aplicativo.

As informações falsas sobre a pandemia também alimentam canais de saúde alternativa em plataformas como o YouTube. Segundo Machado, muitos desses canais, acostumados a propagar informações científicas falsas sobre vacinas, agora estão investindo na promoção de terapias e produtos alternativos para que as pessoas “fortaleçam” seu sistema imunológico contra o vírus e se protejam da pandemia. “Políticos e celebridades estão desempenhando um papel central nesse ciclo de desinformação na internet ao compartilharem esses vídeos, que passam a ter um alcance inimaginável.”

Diante disso, diversos países estão investindo em medidas para tentar conter a propagação de fake news, sobretudo aquelas relacionadas à Covid-19. O combate à desinformação científica, contudo, depende de um esforço mais amplo, envolvendo o poder público, cientistas, jornalistas e divulgadores de ciência na internet. “As pessoas nunca estiveram tão dispostas a ouvir e a falar sobre ciência como no contexto atual”, destaca Iamarino. “Essa é a melhor hora para os pesquisadores investirem em estratégias de comunicação com o público.” Para Nobre, essa comunicação precisa ser aberta e transparente. “Só assim a ciência poderá restabelecer, de fato, sua legitimidade social”, conclui.

Consequências das fake news
A disseminação de informações falsas com o propósito de atacar e desqualificar a ciência ganhou novas proporções nas últimas semanas no Brasil após pesquisadores brasileiros serem perseguidos e ameaçados nas redes sociais por conta dos resultados de uma pesquisa desenhada para testar os efeitos da cloroquina em pessoas infectadas com a Covid-19.

O estudo envolveu pacientes internados em Manaus, no Amazonas, e foi coordenado pela equipe do projeto CloroCovid-19, formada por cientistas de várias instituições de ensino e pesquisa do país, entre elas a Fiocruz. O objetivo era avaliar o uso de duas dosagens do medicamento, uma mais baixa e outra mais alta, em 81 voluntários com a doença. A dosagem mais baixa estava alinhada às recomendações do Ministério da Saúde, enquanto as mais altas seguiam recomendações da Comissão de Saúde da província de Guangdong, na China. Todos os participantes e suas famílias receberam orientações e assinaram um termo de consentimento. O estudo havia sido aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).

Os pacientes apresentaram efeitos colaterais, como arritmia cardíaca, logo na primeira semana de estudo. Por segurança, os pesquisadores decidiram interromper a pesquisa. No entanto, logo depois que a decisão foi tomada, 11 pacientes morreram. Parte deles havia recebido doses mais altas de cloroquina, o que pode ter desencadeado complicações cardíacas fatais. Os primeiros resultados do trabalho foram publicados na plataforma de artigos médicos medRxiv, e depois foram encaminhados para revisão de outros pesquisadores.

O estudo reverberou nos Estados Unidos por meio de uma reportagem publicada no jornal The New York Times. Com a repercussão, os autores do estudo passaram a sofrer ataques nas redes sociais por parte de pessoas dos Estados Unidos e do Brasil, cujos presidentes se engajaram em apresentar a cloroquina como uma solução contra a doença, apesar das evidências parcas de sua eficiência. Os pesquisadores foram acusados de provocar a morte das 11 pessoas no estudo, desenvolvido, segundo eles, para desqualificar a cloroquina como forma de tratamento da Covid-19. Os ataques transformaram-se em ameaças de morte aos pesquisadores e às suas famílias. Alguns deles tiveram dados pessoais expostos na internet.

Jornalistas e comunicadores de ciência também passaram a ser alvo do mesmo tipo de perseguição. Os ataques se intensificaram a partir da implementação de medidas de distanciamento social e paralisação de atividades econômicas no país, recomendadas e justificadas por autoridades científicas e chanceladas por profissionais da imprensa e divulgadores.

Para o sociólogo Rafael de Almeida Evangelista, pesquisador do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade da Unicamp, esse fenômeno sugere que, neste momento, a divulgação científica está cumprindo o seu papel, conseguindo se comunicar para além da bolha que criou para si mesma na internet. “Alguns divulgadores estão assumindo um protagonismo necessário em defesa da precaução, do cuidado e da vida, acima das demandas de um sistema produtivo que se recusa a parar a despeito das mortes que produz”, escreveu em um artigo publicado no site Outras Palavras.

Artigo científico
JOHNSON, N. F. et al. The online competition between pro-and anti-vaccination views. Nature. mai. 2020.

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