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Paleometria

Como enxergar as primeiras formas de vida

Técnicas permitem examinar microfósseis do Pré-Cambriano e podem ajudar na busca por organismos extraterrestres

O alto teor de ferro dá o tom avermelhado às rochas de Mink Mountain

Lara Maldanis / CNPEM

Durante os primeiros bilhões de anos da história da Terra, a vida era microscópica. Os fósseis desse período são, por isso, bem mais difíceis de ser estudados do que os subsequentes, dos últimos 600 milhões de anos, de organismos visíveis a olho nu. A bióloga Lara Maldanis, durante doutorado concluído no ano passado pela Universidade de São Paulo (USP), desenvolveu métodos específicos para estudar essa vida em escala nanométrica, como mostra artigo publicado nesta segunda-feira (18/5) na revista Scientific Reports. Ela e o astrobiólogo Douglas Galante, que foi seu orientador e é pesquisador no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas, veem na técnica – a tomografia pticográfica de raios X, usada pela primeira vez no Brasil – o potencial de estudar a origem da vida na Terra e, muito mais distante, procurar formas de vida em Marte. Eles também destacam a possibilidade de aplicações em saúde, como contribuir para o desenvolvimento de fármacos e o entendimento de como os vírus infectam as células.

Para refinar a metodologia, que usa desde microscopia tradicional a aceleradores de partículas da geração mais recente, o grupo analisou amostras da formação Gunflint, no sudeste do Canadá, primeiro lugar onde foram detectados microrganismos fósseis, ainda na década de 1960. Essa região, já bem estudada do ponto de vista paleontológico, é considerada referência no que diz respeito à vida dessa época, o Pré-Cambriano, graças aos fósseis excepcionalmente bem preservados.

A partir de lâminas com amostras de rocha que abrigam microfósseis de cerca de 1,88 bilhão de anos atrás, Maldanis usou microscopia eletrônica de varredura para selecionar e recortar porções em forma de pilar com 15 micrômetros de diâmetro – 10 vezes mais finos que um fio de cabelo. As amostras fazem parte da coleção do laboratório coordenado pela exobióloga Frances Westall, no Centro de Biofísica Molecular em Orléans, na França, coautora do trabalho. “Essa fase de descobrir como extrair essas amostras de maneira que contivessem microfósseis a serem analisados tomou um tempo considerável do doutorado da Lara”, conta Galante.

Instituto Paul ScherrerAnálises foram feitas no síncrotron suíço SLS (Swiss Light Source)Instituto Paul Scherrer

Afixados à ponta de uma agulha, os fragmentos podem ser girados para análises tridimensionais em equipamentos de imageamento por raios X em aceleradores de partículas do tipo síncrotron. Enquanto as técnicas habituais destroem o material durante a análise, a aprimorada por Maldanis preserva as amostras, de maneira que os minúsculos pilares permanecem disponíveis para que outros grupos de pesquisadores repitam as análises de forma independente. “Lara bateu o recorde mundial de resolução 3D em amostras geológicas de maneira não destrutiva”, comemora Galante. A escala obtida foi de 52 nanômetros, 3 mil vezes menor que a largura de um fio de cabelo.

Isso permitiu delimitar de maneira mais precisa do que antes o interior dos microfósseis e sua morfologia, além de inferir a composição química aproximada com base na densidade dos materiais. Foi possível, assim, identificar microrganismos com formas que variavam desde esferas de tamanho variado a filamentos. “Foi a primeira vez que se viu microfósseis orgânicos em 3D por raios X”, conta Maldanis. As amostras mais bem preservadas, originárias da área Schreiber Beach, já eram mais conhecidas e as análises não trouxeram muitas surpresas – serviram, sobretudo, para validar o método, o objetivo principal.

O material coletado em Mink Mountain, uma área onde a fossilização se deu com menos perfeição, abriga mais mistérios. “Sabíamos que essas estruturas eram fósseis apenas porque tinham seus equivalentes bem preservados em Schreiber Beach”, conta Maldanis. “Também identificamos que os filamentos avermelhados das amostras contêm um óxido de ferro chamado maghemita envolvido na sua preservação, em vez de hematita, um mineral abundante na formação.”

Lara Maldanis / CNPEMMicrofóssil de Mink Mountain: matéria orgânica em verde, fraturas internas em azul e cristais de magnetita em laranjaLara Maldanis / CNPEM

Esses derivados do ferro indicam condições ambientais específicas no período de fossilização: temperaturas elevadas – mas não o suficiente para que a maghemita tivesse se convertido em magnetita, como já foi visto em outros lugares – e presença de matéria orgânica dos próprios microrganismos. “Foi uma surpresa ver que os fósseis eram compostos por matéria orgânica”, conta a bióloga. “Na microscopia óptica apenas o óxido de ferro, avermelhado, era visível.” A densidade dessa matéria orgânica também se mostrou mais alta do que nos fósseis de Schreiber Beach: outro indício das temperaturas mais altas de Mink Mountain.

Maldanis analisou as imagens em 3D utilizando uma técnica chamada de segmentação, em que imagens sequenciais são divididas de acordo com tons de cinza relativos à densidade de elétrons em cada parte do material. A partir da análise desses tons, a pesquisadora definiu intervalos aos quais atribui cores diferentes para facilitar a visualização tridimensional.

“A ideia é produzir imagens que também sejam dados quantitativos por meio da densidade do material, de forma a obter resultados menos subjetivos”, explica Maldanis. Esse tipo de análise está dentro de uma linha de pesquisa que está em seus primórdios no Brasil, a paleometria, liderada pela paleontóloga Mírian Pacheco, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e também usuária do LNLS. O sucesso na aplicação da técnica estimula Galante e Maldanis a aprofundarem esse tipo de análise, buscando estudar amostras ainda mais antigas.

Lara Maldanis / CNPEMMicrofósseis de Schreiber Beach: microscopia óptica (à esq.) e tomografia pticográfica de raios X em 3D (à dir.)Lara Maldanis / CNPEM

Galante lidera o grupo Carnaúba, responsável pelo projeto da linha de luz com o mesmo nome ainda em processo de construção no laboratório Sirius, no campus do CNPEM (ver Pesquisa FAPESP nº 269), e espera obter resultados mais precisos quando a ferramenta entrar em atividade. “Queremos chegar a uma resolução 10 vezes melhor, além de estudar a composição química dos minerais.”

O trabalho de Galante e Maldanis integra o projeto liderado pelo geofísico Ricardo Trindade, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, também coautor do estudo. Os pesquisadores esperam que a divulgação do sucesso da técnica lhes abra portas para colaborações e acesso a amostras de diferentes regiões do mundo e registros de momentos da história da vida primordial da Terra e, quem sabe, de outros objetos celestes.

O registro fóssil terrestre pode servir como modelo para a busca de vida em outros lugares, embasando expedições extraterrestres. Galante, que é especialista no estudo de organismos que teriam a capacidade de viver no espaço, e assim sugerem possíveis formas de vida extraterrestre (ver Pesquisa FAPESP nº 176), ressalta as missões Mars 2020, da agência espacial norte-americana (Nasa), com lançamento previsto para meados deste ano, e Exomars, da agência espacial europeia (ESA), planejada para 2022. Ambas pretendem levar robôs a Marte para analisar e coletar material. “Chegará aqui por volta de 1 quilograma de amostras”, ele prevê. Esse parco material precisa ser estudado da melhor forma possível, e os brasileiros defendem que seu método – e o Sirius como ferramenta – é bom candidato.

Lara Maldanis / CNPEMAmostra de Mink Mountain cortada para microscopia eletrônicaLara Maldanis / CNPEM

Maldanis está agora em estágio de pós-doutorado no Instituto de Ciências da Terra (ISTerre), na Universidade de Grenoble, na França, explorando novas técnicas para estudar a vida antiga em nanoescala. Um desafio é desenvolver maneiras de estudar as amostras de Marte durante sua quarentena: o material que chegará à Terra precisará ser mantido isolado de maneira a evitar contaminação nos dois sentidos. Um dos objetivos do grupo onde a bióloga está é adaptar as técnicas de imagem para poder estudar amostras dentro de invólucros transparentes aos raios X.

“A tomografia pticográfica se fundamenta em ciência básica que busca entender as origens da vida”, diz Galante. “Mas ela também pode ter aplicação tecnológica no estudo e desenvolvimento de materiais nanoestruturados e permitir a análise tridimensional de células vivas para estudar o funcionamento das organelas em pouquíssimo tempo.” Segundo ele, esse tipo de enfoque ajudaria a entender como as células reagem a patógenos e como medicamentos podem funcionar. Um exemplo do trânsito precioso entre ciência básica e suas possíveis aplicações.

Projetos
1. O Sistema Terra e a evolução da vida durante o Neoproterozoico (nº 16/06114-6). Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Ricardo Ivan Ferreira da Trindade (USP); Investimento R$ 6.552.123,07.
2. Desenvolvimento e aplicação de técnicas de imageamento de alta resolução para caracterização morfológica de microfósseis (nº 15/21810-6); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Douglas Galante (CNPEM); Bolsista Lara Maldanis Cerqueira Peres; Investimento R$ 214.958,51.

Artigo científico
Nanoscale 3D quantitative imaging of 1.88 Ga Gunflint microfossils reveals novel insights into taphonomic and biogenic characters. Scientific Reports. on-line. 18 mai. 2020.

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