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Boas práticas

Correção veloz de erros

Produção científica sobre o novo coronavírus tem trabalhos cancelados por equívocos e falhas metodológicas, na maioria cometidos de boa-fé

Freepik

O site Retraction Watch, que mantém uma base de dados com mais de 20 mil artigos científicos cancelados por erros ou por má conduta, começou a rastrear estudos sobre a Covid-19 que tiveram a publicação suspensa após a contestação de seus resultados. A quantidade de trabalhos invalidados é pequena e quase todos eles envolvem equívocos cometidos de boa-fé, na ânsia de divulgar resultados que poderiam ajudar no combate à epidemia. De mais de 8 mil trabalhos relacionados à doença publicados nos quatro primeiros meses do ano, apenas seis artigos – ou 0,075% do total – apresentaram erros ou problemas metodológicos que comprometeram suas conclusões, e por isso foram removidos. Outros dois papers tiveram uma espécie de retratação temporária – foram retirados do ar pelos periódicos científicos que os publicaram para que recebessem correções. Há ainda um artigo que foi alvo de uma “expressão de preocupação”, declaração usada para sinalizar a existência de dúvidas sobre seus métodos ou resultados, que estão sob investigação.

No rol de trabalhos cancelados, um exemplo foi um manuscrito publicado no repositório de preprints medRxiv por pesquisadores chineses e norte-americanos que avaliava as características epidemiológicas e clínicas do surto do novo coronavírus na China. O trabalho se baseou nos casos registrados no país até o dia 26 de janeiro. Como a epidemia explodiu em fevereiro – em um mês, o número de casos chineses cresceu 18 vezes –, os autores perderam a confiança nos resultados e pediram a retirada do manuscrito para refazer sua análise, ressalvando que os métodos e as conclusões principais permaneciam corretos. O trabalho teve vida curta e ficou disponível no repositório apenas entre os dias 10 e 21 de fevereiro. Mas a retirada do manuscrito teve repercussão em outros trabalhos que se basearam em seus achados.

Um deles foi o relatório do Imperial College de Londres, posteriormente publicado na revista The Lancet Infectious Diseases (Lancet ID), que fez projeções sobre o número de casos e mortos em diferentes cenários da pandemia e ajudou diversos países a traçar estratégias de combate ao novo coronavírus. O grupo do Imperial College pediu que o artigo da Lancet ID fosse corrigido, com a retirada dos dados extraídos do trabalho chinês, mas ressalvou que isso não modificava os cenários estimados. “Se os dados estivessem incorretos, isso influenciaria nossa conclusão sobre o padrão dependente da idade dos casos que geram hospitalizações. Mas a epidemia avançou e agora há mais conjuntos de informações mostrando um padrão muito semelhante ao estimado em nosso artigo”, afirmou ao Retraction Watch a médica Azra Ghani, do Imperial College, coautora do paper, que lamentou não ter verificado se o trabalho chinês ainda era válido quando submeteu o artigo para publicação.

Um dos casos mais rumorosos envolveu um trabalho publicado no final de janeiro no repositório bioRxiv por pesquisadores da Escola de Ciências Biológicas Kusuma, em Nova Déli, Índia. Já no título, apontava uma “misteriosa semelhança” entre o novo coronavírus e o HIV, causador da Aids. A coincidência era classificada no texto como “improvável de ser fortuita”. O manuscrito permaneceu disponível por apenas dois dias, tempo suficiente para que alimentasse teorias conspiratórias nas redes sociais. Houve tantas críticas sobre a precariedade de sua metodologia que os autores solicitaram a retirada do manuscrito do repositório, a fim de que fosse reavaliado. Sobraram repreensões ao bioRxiv, por admitir a publicação de um trabalho com tantas fragilidades, e para os repositórios de preprint, de modo geral, por divulgarem resultados científicos de forma instantânea, deixando para os leitores a tarefa de avaliar a consistência dos dados.

Na opinião dos editores do Retraction Watch, Ivan Oransky e Adam Marcus, as críticas aos preprints são exageradas, uma vez que mesmo revistas científicas com sistemas de revisão por pares bastante seletivos e rigorosos já publicaram artigos problemáticos e precisaram retratá-los. Por outro lado, eles avaliam, o modelo adotado pelos repositórios parece ter o mérito de identificar rapidamente problemas nos manuscritos e corrigi-los. “Quando revistas científicas publicam pesquisas ruins ou equivocadas, podem levar meses e até anos para retificar ou retratar os trabalhos – isso, quando o fazem”, escreveu a dupla, em um artigo de opinião no serviço de notícias Stat News.

Um grupo de pesquisadores franceses solicitou a retratação de um artigo, publicado no Bulletin de la Dialyse à Domicile no dia 13 de abril, que alertava para o perigo de contaminação por meio do contato com o fluido de diálises peritoneais de pessoas com Covid-19, a exemplo do que já se comprovou em relação a fezes e urina de doentes. O trabalho era um estudo de caso de um paciente com sintomas do novo coronavírus que foi submetido à diálise, cujo fluido testou positivo para o vírus. Descobriu-se, após a publicação do artigo, que as conclusões eram integralmente falhas porque o paciente não tinha, de fato, Covid-19. Sete exames foram realizados e todos deram negativo – a suspeita é de que o quadro pulmonar que o paciente apresentava estava relacionado, na verdade, a uma doença cardíaca. Os oito autores atribuíram o fiasco a um erro e não à negligência. “Com base nas informações posteriores e após cuidadosa discussão com virologistas, avaliamos que o primeiro resultado positivo foi errôneo, sem que houvesse explicação para isso”, escreveram, na solicitação de retratação.

Em um dos trabalhos cancelados há indícios de má conduta dos autores. A revista The Lancet Global Health anunciou no dia 26 de fevereiro a retratação de uma carta que descrevia a dura experiência de enfermeiros no combate ao novo coronavírus em Wuhan, na China. “Além da exaustão física, também estamos sofrendo psicologicamente. Às vezes, enfermeiros experientes encontram tempo para confortar os colegas e tentar aliviar a nossa ansiedade. Mas mesmo enfermeiros experientes também podem chorar, porque não sabemos por quanto tempo ficaremos aqui e porque somos o maior grupo de risco para a infecção da Covid-19”, escreveram os dois signatários da carta, Yingchun Zeng, profissional de enfermagem, e Yan Zhen, especialista em medicina tradicional chinesa. Logo após a publicação, a revista foi alertada por médicos que atuavam no combate à epidemia em Wuhan que a dupla de autores não fazia parte da força-tarefa de profissionais da saúde mobilizada para atender os doentes. Eles admitiram que o relato apresentado era de segunda mão e não dizia respeito à sua experiência direta. Ambos concordaram com a retratação.

O caso mais inusitado envolve um artigo publicado no dia 5 de março no Chinese Journal of Epidemiology e retratado dois dias mais tarde. O artigo abordava a existência de possíveis resultados falsamente positivos para a Covid-19 entre indivíduos que mantiveram contato próximo com pessoas com a doença na China, mas não se sabe o que ele tinha de errado. Os editores da revista mantiveram silêncio sobre os motivos da retratação. Nem sequer foi possível analisar o artigo original, que desapareceu da internet. Apenas seu resumo em inglês ficou registrado na plataforma PubMed. Pelo resumo, depreende-se que foi feita uma avaliação de um teste de diagnóstico desenvolvido na China e que houve um número elevado de falsos positivos entre os 47% da população de Wuhan que tiveram contato próximo com vítimas do novo coronavírus, mas não desenvolveram sintomas. A retratação se tornou alvo de curiosidade porque o artigo cancelado foi mencionado como válido por autoridades da saúde dos Estados Unidos que estavam sendo pressionadas a importar exames para testar massivamente a população do país. A médica Deborah Birx, que coordena a força-tarefa da Casa Branca contra o novo coronavírus, afirmou em uma entrevista coletiva que “não ajudaria importar testes em que 47% são falsos positivos”, confundindo o que seria o índice de precisão do teste com o percentual de pessoas assintomáticas que tiveram contato com doentes.

De acordo com reportagem publicada no dia 15 de abril na revista Nature, as retratações de artigos sobre a Covid-19 na China podem estar vinculadas a um controle governamental sobre a divulgação de resultados de pesquisa sobre a doença. Há relatos de representantes de universidades segundo os quais estudos sobre a origem do vírus Sars-CoV-2 só podem ser publicados com autorização de um comitê acadêmico e dos ministérios da Educação e da Ciência e Tecnologia. Segundo fontes consultadas pela Nature, essa triagem buscaria evitar a publicação de artigos de baixa qualidade e também controlar as informações sobre a eclosão da pandemia. A revista chinesa Pratical Preventive Medicine anunciou a retratação de um paper publicado no início de março segundo o qual o vírus Sars-CoV-2 poderia se espalhar por quase 5 metros em partículas de aerossol – o dobro da distância que as autoridades de saúde consideram segura. O artigo teve repercussão em veículos de imprensa da China e da Europa ao mostrar, de forma esquemática, que uma pessoa doente viajando em um ônibus com ar-condicionado poderia infectar pessoas a até sete bancos de distância. Também nesse caso não houve transparência sobre o motivo da retratação.

O Retraction Watch rastreou dois artigos que foram retratados, mas apenas temporariamente. Um deles, publicado na revista Engineering por pesquisadores da Universidade de Ciência e Tecnologia de Shenzhen, na China, avaliou a eficácia do um antiviral favipiravir, remédio usado contra o vírus influenza, em um grupo de 45 pacientes. O teste do tratamento experimental indicou que os pacientes tratados com o favipiravir melhoraram mais rapidamente do que o grupo que não tomou o medicamento – por isso, os autores sugeriram a realização de estudos de larga escala para comprovar o efeito. Uma nova versão do paper já foi publicada, com conclusões convergentes com a anterior. A Engineering não explicou o que houve de errado.

O segundo trabalho retratado temporariamente foi uma carta publicada pelo chinês ZhiQiang Yin, da Universidade Médica de Nanjing, no Journal of the American Academy of Dermatology, cujo título despertou comentários e curiosidade nas redes sociais: “Covid-19: Práticas sexuais devem ser desencorajadas durante a pandemia?”. Segundo o editor do periódico, o dermatologista Dirk Elston, da Universidade Médica da Carolina do Sul, os problemas do artigo são de forma e não comprometem a discussão proposta pelo autor, a respeito do risco de pegar a doença por contato sexual. “Não é uma retratação. Há problemas de linguagem no artigo e ele será republicado”, disse ao Retraction Watch.

Por fim, há o artigo sobre o qual pesa uma “expressão de preocupação” e está sendo investigado pela editora Elsevier. Trata-se do controverso paper de autoria do francês Didier Raoult, do hospital IHU-Méditerranée Infection e da Universidade Aix-Marselha, sobre a utilidade da hidroxicloroquina, droga usada conta a malária, e do antibiótico azitromicina no tratamento da infecção por Covid-19, publicado no dia 20 de março no International Journal of Antimicrobial Agents. O estudo, realizado em um grupo restrito de 42 pacientes, obteve resultados amplamente favoráveis para a terapia que desencadearam um interesse planetário pela associação de medicamentos – sua eficácia contudo não tem sido confirmada em ensaios mais amplos. A investigação em curso não tem a ver com a eficiência da cloroquina, mas com os métodos utilizados por Raoult. A Sociedade Internacional de Quimioterapia Antimicrobiana, responsável pelo periódico que publicou o artigo, declarou que há dúvidas sobre os critérios de inclusão e triagem dos pacientes que participaram do ensaio. O paper afirma que os pacientes foram acompanhados por 14 dias, mas o intervalo de tempo entre a aprovação do estudo por um comitê de ética e sua publicação no repositório de preprints foi de apenas 10 dias. Isso gerou suspeitas de que o estudo teve início sem autorização. O processo de revisão por pares seguiu um padrão atípico. O artigo foi divulgado no dia 16 de março no repositório de preprints medRxiv. Simultaneamente, foi submetido ao International Journal of Antimicrobial Agents, que deu o aceite no dia 17 e o publicou on-line no dia 20. “A revisão por pares foi feita em apenas 24 horas, uma velocidade incrível”, escreveu no blog Science Integrity Digest a microbiologista Elizabeth Bik, especializada em identificar indícios de fraudes em artigos científicos (ver Pesquisa FAPESP nº 245).

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