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Pesquisa na quarentena

“Com a eclosão da crise sanitária, a ideia de coesão social se tornou ainda mais vital”

Quarentena da socióloga política Elisa Pereira Reis tem sido marcada pela discussão sobre novas vulnerabilidades decorrentes da pandemia

Em seu apartamento em 2018, quando concedeu entrevista a Pesquisa FAPESP

Léo Ramos Chaves

Nunca imaginei estar tão ocupada numa quarentena! Nos últimos dois meses, tive que cancelar 10 viagens, programadas para acontecer entre 1º de março e 20 de julho. Esses cancelamentos mudaram muito a minha rotina. Normalmente viajo sem parar. Agora, todas essas reuniões estão sendo feitas de forma on-line.

O desafio tem sido conseguir conciliar tudo isso com minha intensa rotina de trabalho. Participo de diversos comitês que organizam reuniões semanais. Sou vice-presidente do International Science Council [ISC]. Como parte das atividades do ISC, tenho participado de diferentes frentes. Uma delas envolve uma comissão internacional que discute os problemas correntes e reflete sobre o mundo pós-pandemia. Esse comitê discute inclusive as novas vulnerabilidades que surgirão em decorrência da pandemia. No mundo, e em especial no Brasil, já existia, claro, muita gente em situação de fragilidade. Mas agora o ISC se preocupa tanto com as antigas como com as novas vulnerabilidades que começam a surgir por toda parte.

Como cientista social, nesse fórum costumo propor reflexões relacionadas à renda, ao trabalho e à educação. No Brasil, onde há muito trabalhador precarizado, eu pensava os vulneráveis como sendo trabalhadores informais ou pessoas sem acesso à educação. Mas agora vejo que gente da classe média também ficou vulnerável. De repente, comecei a ouvir colegas de outras áreas da ciência introduzindo problemas de depressão e ansiedade, eventos aos quais eu não estava tão atenta. Haverá uma parcela grande de pessoas que perderá emprego e renda, obrigando-a a mudar seu estilo de vida. Em um país como o Brasil, pessoas que tinham empregos bem remunerados, com ensino superior completo, também vão sofrer. Essas são preocupações novas, que não estavam em nossas discussões antes da pandemia.

Além das vulnerabilidades, o ISC vem discutindo assuntos envolvendo coesão social e resiliência, este último um conceito do qual não gosto muito, mas que hoje em dia está sendo usado para tratar da situação das sociedades no contexto da pandemia. Antes da Covid-19, já havia sinais no mundo do aumento da polarização política e do populismo. A crise sanitária eclodiu em meio a esse panorama, fazendo com que a ideia de coesão social seja ainda mais vital. Como manter a sociedade coesa, em meio a tantos desafios? Estamos trabalhando exatamente sobre isso, para entender que variáveis afetam o grau de coesão social das sociedades.

Dentro do ISC, estou também em um comitê de cerca de 10 pessoas que estão trabalhando com um grupo da Organização das Nações Unidas [ONU] para recolher subsídios à elaboração da 30a edição do relatório de desenvolvimento humano, o Human Development Report. Há dimensões que precisam ser incluídas no relatório para melhor incorporar a noção de desenvolvimento humano.

Também participo das reuniões da direção do ISC para a tomada de decisões administrativas. É muito complicado conciliar os horários de pesquisadores em diferentes partes do mundo, que até então mantinham encontros presenciais periódicos. Por causa do fuso horário, os encontros virtuais têm acontecido para mim às 5 ou 6 da manhã. Cada reunião desses comitês do ISC exige a produção de documentos que vão embasar o encontro da semana seguinte.

Outra atividade que me ocupa diz respeito ao International Panel on Social Progress, que reúne pesquisadores de diversas partes do mundo. No início de maio, realizamos um workshop virtual sobre o conceito de externalidade na Universidade Princeton, nos Estados Unidos. Esse conceito refere-se aos efeitos positivos e negativos das atividades de produção, consumo e lazer que não estão contemplados nos preços das transações evolvidas nessas atividades. O International Panel on Social Progress engloba cerca de 300 cientistas sociais. Mas nesse evento recente éramos apenas um pequeno grupo. Durante dois dias, 15 pesquisadores abordaram como diferentes disciplinas das ciências sociais utilizam o conceito de externalidade e como ele pode ser útil para buscar soluções para problemas sociais, entre os quais os causados pela pandemia.

Na minha comunicação, a ideia era discutir o conceito de forma mais ampla e teórica, mas decidi trabalhar com a ideia de externalidades negativas, aquelas que geram males públicos. As externalidades negativas de uma pandemia incidem de forma mais extensa sobre as pessoas mais pobres, que apresentam menores condições de fazer isolamento ou que têm menos acesso ao saneamento básico. Entretanto, o desconhecimento de vacinas e terapias torna as elites também vulneráveis à Covid-19. O impacto sobre as classes mais favorecidas é o argumento convincente da necessidade de cuidar dos mais pobres e vulneráveis. Ou seja, o momento atual de emergência sanitária abre uma oportunidade rara para convencer a elite a reconhecer o direito de toda a população ter acesso à saúde pública, ao saneamento, entre outras necessidades básicas. Isso porque, nesse contexto, ela percebe que a privação desses direitos para os mais pobres irá afetá-la direta ou indiretamente.

Vivemos um momento especial no qual é possível mostrar, de forma inegável, que benefícios concedidos às populações carentes impactam positivamente a sociedade como um todo. A rapidez excepcional com que o Congresso aprovou o programa de ajuda emergencial reconhece que, se o país não der aos mais pobres condições de sobreviver, a economia e a saúde pública entrarão em colapso. A discussão sobre externalidades, que antes se fazia conceitualmente, ganha muita concretude. Há uma indicação clara de que as elites e a sociedade no Brasil estão mais sensíveis às necessidades dos menos beneficiados. Apesar disso, não estamos seguros sobre a duração dessa janela de oportunidade. É legítimo indagar se e quando surgir uma vacina ou remédios eficazes para a Covid-19 aqueles que podem pagar pela prevenção e tratamento manterão a preocupação e o compromisso com a sorte das pessoas mais vulneráveis.

Também tenho participado de eventos e reuniões de um comitê sobre elites e desigualdades do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais [Clacso]. Esse comitê acabou de ministrar um curso no qual usou, entre muitos outros, um livro meu. Gravei uma fala para esse curso. Além disso, tenho dado entrevistas e participado de webinários, como, por exemplo, um que discutiu o mundo a partir do coronavírus, organizado pela Academia Brasileira de Ciências [ABC] em abril.

Nas reuniões da ISC e do International Panel on Social Progress, em que sou a única brasileira, recebo muitas manifestações de solidariedade e de preocupação com a situação do nosso país, que convive com a gravidade da pandemia e com os efeitos negativos da forma como o governo federal tem lidado com o problema.

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