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Química

A rota inversa da reciclagem

Garrafas plásticas descartadas transformam-se em matérias-primas derivadas de petróleo

MIGUEL BOYAYAN Símbolo da poluição: garrafas PET gigantes nas margens do rio Tietê, em São Paulo, na arte de Eduardo SrurMIGUEL BOYAYAN

Um retrato do desperdício no Brasil descortina-se na análise do lixo produzido em Indaiatuba, cidade de 175 mil habitantes na região de Campinas, feita durante um ano por pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Sorocaba, no interior de São Paulo. O levantamento revela que cerca de 90% dos resíduos poderiam ser utilizados e reciclados e apenas 10% das 135 toneladas de lixo produzidas diariamente, como fraldas descartáveis, lixo de banheiro, pilhas e outros materiais capazes de causar contaminação, teriam obrigatoriamente como destino o aterro sanitário. O estudo, publicado em dezembro de 2007 na revista Waste Management & Research, periódico oficial da Associação Internacional de Resíduos Sólidos, é parte de um projeto de desenvolvimento de processos alternativos de reciclagem de embalagens plásticas feitas a partir de poli (tereftalato de etileno), o conhecido PET das garrafas de refrigerante, água mineral e óleo de cozinha, coordenado pelo professor Sandro Mancini, da Engenharia Ambiental da Unesp Sorocaba, com financiamento da FAPESP.

Três processos de reciclagem de plástico estudados pelo grupo de Mancini apresentaram resultados alentadores. Um deles propõe uma rota inovadora para a obtenção do ácido tereftálico – um dos reagentes importados utilizados na produção do PET – a partir de garrafas plásticas usadas e descartadas, uma matéria-prima barata e abundante. Dados da Associação Brasileira das Indústrias Químicas mostram que em 2007 o Brasil importou 347.057 toneladas desse ácido, no valor de US$ 337,8 milhões. Tema da tese de doutorado de Mancini na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) sob orientação da professora Maria Zanin, que resultou em um depósito de patente, essa rota, um tipo de reciclagem química, foi combinada à reciclagem mecânica do PET, composta por moagem, lavagem, secagem e reprocessamento. Durante o processo de lavagem com água foi adicionada soda cáustica. Na reciclagem química, o objetivo é forçar o plástico a ter uma reação contrária à ocorrida na sua formação. “Em vez de os derivados de petróleo serem polimerizados para formação do plástico, utilizamos reações de despolimerização para obter os derivados de petróleo como o ácido tereftálico”, explica o pesquisador. “É um novo sistema de obtenção de derivados de petróleo.”

Com a nova rota é possível conseguir um material mais limpo, apropriado para os processos de reciclagem mecânica tradicionais de garrafas plásticas descartadas em que o material resultante é usado para fazer cordas, vassouras, carpetes e outros produtos. A combinação de água e soda cáustica provoca um descascamento da superfície do PET, que retém a maior parte das impurezas presentes no material reciclado. “Os resultados foram muito bons, indicando que 5% de remoção de material é suficiente para revelar uma superfície bem mais limpa”, relata Mancini. Para chegar a essa constatação, foram feitos vários ensaios, como análise elementar, viscosidade, microscopia eletrônica e cromatografia gasosa. Os resultados mais evidentes são os de microscopia eletrônica, em que foi possível observar o ataque do reagente e a remoção da superfície. “Quando utilizamos o recurso de raio X do microscópio, pudemos fazer uma análise da composição de minúsculos pedaços da superfície e vimos a grande eficiência da lavagem química na remoção de impurezas, muitas vezes impregnadas pela ausência de coleta seletiva, associadas a metais como alumínio, ferro, titânio, potássio, cálcio e sódio.” O processo funcionou tanto para garrafas de refrigerante como para as de óleo vegetal usadas e descartadas.

No entanto, o estudo dos compostos orgânicos identificados nas embalagens de óleo antes e depois da lavagem química apontou a necessidade de uma reciclagem diferenciada para a obtenção de produtos com a mesma qualidade dos provenientes de embalagens de refrigerante. “A lavagem química foi boa, mas não perfeita, principalmente no caso das embalagens de óleo vegetal”, diz Mancini. Mesmo após esse procedimento, foram encontrados 19 compostos orgânicos dos 30 inicialmente identificados dentro desse tipo de embalagem. O material removido na lavagem é o PET despolimerizado, de onde o ácido tereftálico pode ser obtido por meio de processos químicos e físicos, como dissolução, acidificação e filtração.

SANDRO MANCINI/UNESP Câmara de plasma: gás para facilitar a lavagem das garrafasSANDRO MANCINI/UNESP

Ácido puro
O segundo dos três processos estudados trata também da despolimerização do PET via reciclagem química para a obtenção de ácido tereftálico e de etilenoglicol, outro produto derivado do petróleo. No caso, com apoio dos professores Elidiane Rangel e Nilson Cruz, também da Unesp Sorocaba, foi utilizado um tratamento com plasma de ar atmosférico para deixar a superfície das garrafas plásticas mais receptiva à água usada no processo. Para formar o plasma, aplica-se uma determinada potência elétrica num gás sob baixa pressão. “O plasma ajudou a aumentar a velocidade da reação de hidrólise”, diz Mancini. Por esse processo, os pesquisadores conseguiram obter ácido tereftálico em quantidade suficiente e com alto grau de pureza, mas em relação ao etilenoglicol o estudo ainda não está encerrado. O grau de pureza do produto obtido está abaixo do esperado pelo grupo de pesquisa. “A nossa proposta é obter os dois derivados num estado tão puro quanto o do petróleo, a ponto de eles poderem ser repolimerizados para obtenção de novo PET que possa, inclusive, ter contato direto com alimentos”, diz Mancini. Para as embalagens recicladas serem utilizadas com essa finalidade, é preciso autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (leia texto ao lado). Mesmo sem divulgação, o processo de obtenção dos dois derivados do petróleo com utilização de plasma chamou a atenção de uma empresa do Paraná, mas ainda não há um contrato de repasse da tecnologia.

A reciclagem mecânica de PVC, sigla de poli (cloreto de vinila), com aplicação de plasma de hexafluoreto de enxofre, um tipo de gás, é o terceiro processo estudado pelo grupo. O tratamento foi utilizado para deixar a amostra com menor afinidade em relação à água visando aumentar a resistência da superfície à passagem da corrente elétrica. Assim, o material tratado a plasma conduz menos eletricidade que o material sem tratamento, o que é bom para aplicações comuns do PVC reciclado, como conduítes. “Na comparação das propriedades de superfície do PVC reciclado com o produto virgem, vimos que os dois materiais não apresentavam muita diferença”, diz Mancini. O PVC utilizado nesse estudo foi retirado de um aterro de resíduos de construção civil de Sorocaba, porque há pouco material desse tipo no lixo doméstico. As estimativas, feitas com apoio da prefeitura da cidade, indicam que Sorocaba descarta cerca de 500 toneladas de entulho por dia, além de outras 350 toneladas de resíduos domésticos. Esse projeto conta com apoio técnico da empresa Braskem.

Outro dado obtido pelo grupo é o maior descarte de alumínio e PET incolor nos meses com alta temperatura. Do PET incolor descartado, cerca de 26%, em massa, são embalagens de óleo, que costumam ter o preço reduzido em relação às embalagens de água e de refrigerantes, pois normalmente apresentam mais impurezas impregnadas, como constatado no estudo sobre lavagem química. Dos plásticos, o mais encontrado nos resíduos é o polietileno de alta densidade, presente nas sacolas de supermercado, por exemplo. As estimativas consideram uma média de 5 mil quilos de descarte desse material por dia. Para comprovar na prática que a reciclagem só compensa quando há a separação prévia do lixo seco do úmido, os pesquisadores pegaram amostras de sacolas plásticas do aterro sanitário para serem recicladas. As amostras foram pesadas, lavadas, enxaguadas, colocadas para secar e pesadas novamente, sem as impurezas. “Na coleta comum a diferença de peso chega a 40%, enquanto na coleta seletiva não chega a 10%”, diz Mancini. Isso significa que, a cada mil quilos de material para reciclagem após um sistema de coleta convencional, apenas 600 quilos correspondem ao plástico, o resto é sujeira, que será transferida para a água após a lavagem.

Regras para alimentos

As embalagens de PET reciclado estão liberadas, desde abril deste ano, para acondicionar alimentos. O registro do produto na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é a principal exigência para a utilização do PET com essa finalidade. Além disso, o rótulo da embalagem deve conter o nome do produtor, o número de lote e a expressão PET-PCR, de pós-consumo reciclado. A norma da agência fundamentou-se no surgimento de novas tecnologias capazes de limpar e descontaminar esse tipo de material, independentemente do sistema de coleta. A liberação atende a uma exigência do Mercado Comum do Sul (Mercosul), acertada entre os países membros em dezembro do ano passado. A decisão deverá contribuir para aumentar o índice de reciclagem das garrafas plásticas descartadas após o uso. Em 2006, das 378 mil toneladas (à base) de PET fabricadas no Brasil, 194 mil toneladas foram recicladas, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria do PET (Abipet) divulgados no final do ano passado, para a produção de fios, cordas e carpetes, por exemplo. As outras 184 mil toneladas contribuíram para aumentar o volume dos depósitos de lixo ou foram parar em córregos e rios ou outros locais inapropriados.

Detalhes do lixo municipal

A análise do lixo de Indaiatuba também dá algumas pistas do padrão de consumo das famílias brasileiras. “Uma análise socioeconômica dos resíduos indicou que bairros de classe baixa descartam menos embalagens e mais restos de comida, sapatos e entulho”, diz Mancini. Foram avaliadas dez amostragens obtidas diretamente do caminhão coletor entre setembro de 2004 e julho de 2005. Para a escolha de cada amostragem, levou-se em conta a região geográfica da cidade, a estação climática do ano na época da coleta e a classe social do bairro. No município, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2001, a classe alta corresponde a 11% da população, enquanto as classes média e baixa representam 55% e 34%, respectivamente. O lixo foi subdividido em 27 itens, cada um escolhido por sua potencialidade ou não para a reciclagem. Os itens separados foram restos de comida, fraldas, lixo de banheiro, tecidos, calçados, pilhas, embalagens de leite em caixa, vidro, latas de aço, alumínio, entulho, papéis e plásticos. Desses itens, 23 podem ser reutilizados e reciclados, desde que a gestão dos resíduos sólidos esteja relacionada à coleta seletiva.

Dos 135 mil quilos de resíduos descartados diariamente, 54 mil quilos, que correspondem a 40% do total, são restos de comida. Somados às folhas e galhos de árvores, enquadrados na categoria restos de jardim, resultam em 55% de matéria orgânica apodrecendo em aterro sanitário. Cálculos indicam que o custo médio da coleta e destinação do lixo fica em torno de R$ 100,00 a tonelada. Em cidades menores, por conta das distâncias mais curtas de transporte, esse valor cai para R$ 70,00 a tonelada. “Só em Indaiatuba são gastos quase R$ 10 mil por dia com coleta e aterramento, o que significa R$ 3 milhões por ano, que se somam a outros R$ 6 milhões anuais em materiais que poderiam ser reciclados”, diz Mancini. Embora os dados sejam de Indaiatuba, eles podem ser estendidos para outros municípios que não contam com programas de coleta seletiva.

O Projeto
Desenvolvimento de processos alternativos de reciclagem de poli (tereftalato de etileno) proveniente de resíduos sólidos urbanos (nº 04/08718-9); Modalidade Programa Apoio a Jovens Pesquisadores; Co­or­de­na­dor Sandro Donnini Mancini – Unesp; Investimento R$ 79.015,94 (FAPESP)

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