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Farmacologia

Ação inesperada à distância

Neurônios podem transportar remédios contra dor e inflamação

SREPRODUÇÃO DO LIVRO O DIÁRIO DE FRIDA KAHLOérgio Henrique Ferreira sempre foi curioso e perseverante. É assim na cozinha de sua casa, onde costuma surpreen­der familiares e amigos com exóticas combinações de ingredientes, e também em seu laboratório na Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, onde há 36 anos investiga como agem os compostos capazes de bloquear uma das características mais incômodas da inflamação, a dor. A combinação dessas qualidades levou-o a descobrir em 1972 como o ácido acetilsalicílico, o princípio ativo da aspirina, previne a inflamação e ameniza a dor e, anos mais tarde, a demonstrar que a morfina, o mais antigo e potente analgésico conhecido, suprime a dor por atuar diretamente sobre os nervos responsáveis pela sensibilidade de órgãos e tecidos do corpo – e não apenas por sua ação sobre o cérebro e outros órgãos do sistema nervoso central, como se acreditava. Agora do laboratório desse farmacologista nascido em Franca, no interior paulista, emerge uma descoberta inesperada: como se dá a interação de analgésicos e anti-inflamatórios com um grupo especial de células, os neurônios nociceptivos.

Esses neurônios, que inervam a pele, os músculos, os ossos, os vasos sanguíneos e as vísceras, funcionam como a porta de entrada da dor no organismo. São chamados de nociceptivos por detectarem estímulos ambientais nocivos ao corpo, como o calor da chama de um palito de fósforo, e os conduzirem ao sistema nervoso central, onde são interpretados como dor.

Ferreira constatou, trabalhando em parceria com a equipe da farmacologista Berenice Lorenzetti, da Universidade Federal do Paraná, que determinados compostos capazes de combater direta ou indiretamente a dor podem percorrer distâncias relativamente grandes no interior desses neurônios – no ser humano eles podem passar de um metro de comprimento – sem perder suas propriedades analgésicas ou anti–inflamatórias características.

O transporte de medicamentos por essas células permite explicar, por exemplo, por que a injeção de um analgésico como o diclofenaco ou a morfina nas proximidades de um ferimento profundo na perna age muito além do local da aplicação e ainda pode ser tão eficiente no bloqueio da dor quanto se tivesse sido administrado na região lombar da coluna vertebral – área a partir da qual facilmente alcança o fluido que banha a medula espinhal e outros órgãos do sistema nervoso central.

Possibilidades
Conhecer essa forma de transporte abre também a possibilidade de desenvolvimento no futuro de novas estratégias de administração de analgésicos e anti-inflamatórios, com menos efeitos colaterais. Dores intensas como as provocadas por algumas formas de câncer avançado ou grandes cirurgias são amenizadas hoje com a aplicação de analgésicos e anti-inflamatórios perto da medula espinhal, prática que geralmente exige acompanhamento médico, pois os fármacos podem atingir os nervos e centros cerebrais que controlam a respiração e, em certas situações, levar à morte.

“Talvez um dia esses casos possam ser tratados de maneira menos agressiva, com injeções musculares, uma vez que os músculos são inervados por esses neurônios”, imagina Ferreira. Se essa alternativa de tratamento der certo, será como fechar a porta pela qual a dor tem acesso ao organismo. Ferreira explica o raciocínio comparando o corpo a um edifício. “Se não se deixa o cachorro passar pelo térreo, ele não chegará ao décimo andar”, diz. “A compreensão de como bloquear a entrada do prédio pode permitir o controle das dores que não têm origem no sistema nervoso central.”

“Mas antes será preciso realizar testes para ver se, de fato, essa estratégia funciona”, diz o farmacologista, que iniciou sua carreira científica há quase cinco décadas como assistente de um dos maiores pesquisadores brasileiros – o médico carioca Maurício da Rocha e Silva, morto em 1983, descobridor da bradicinina, peptídeo das células sanguíneas humanas que é liberado por enzimas do veneno da jararaca e controla a pressão arterial.

Foram necessários quase 15 anos de trabalho até que Ferreira e sua equipe compreendessem o que os experimentos mostravam. As primeiras pistas de que alguns fármacos poderiam viajar pelos neurônios surgiram em meados da década de 1990, quando ele e Berenice aplicaram no líquido (líquor) que banha a medula espinhal de ratos compostos que excitam os neurônios nociceptivos e os tornam mais sensíveis aos estímulos dolorosos.

Não se esperava que a aplicação do composto no líquor afetasse regiões do corpo tão distantes como as patas, ainda que a medula espinhal abrigue prolongamentos dos neurônios que as inervam. Depois da injeção, porém, os ratos passaram a retirar a pata ante uma pressão a que antes eram indiferentes, sinal de que elas haviam se tornado tão sensíveis ao toque quanto um dedo depois de uma martelada.
Diante desse resultado que não conseguia explicar, Ferreira decidiu buscar mais evidências de que era um efeito real e deixar algumas ideias sobre esse fenômeno descansando na gaveta, para amadurecer. Enquanto isso, as farmacologistas Mani Funez, da equipe de Berenice, e Djane Duarte, pós-graduanda no laboratório de Ferreira, foram ver o que ocorria se, ao mesmo tempo, os animais recebessem uma dose de analgésico na pata, bem distante da injeção do fármaco sensibilizante. Em uma segunda rodada de testes, elas inverteram o local de aplicação e constataram que, mesmo injetado longe do composto sensibilizante, o analgésico eliminava a dor.

Numa terceira fase adicionaram aos experimentos um terceiro composto – chamado antagônico, por inibir a ação do analgésico –, aplicado junto com o sensibilizante. Ou seja, quando davam analgésico na pata, injetavam o sensibilizante e o antagônico no líquor, e vice-versa. Depois compararam os resultados obtidos com o de um grupo de animais que receberam os dois compostos de ação antagônica (um analgésico e outro que inibe seu efeito) simultaneamente no mesmo lugar – apenas nas patas ou apenas na medula.

Os fármacos de ação contrária aplicados em regiões distantes não deveriam interagir, um anulando o efeito do outro, caso não fossem transportados ao longo dos neurônios. Ou seja, sem essa interação, o antagônico não deveria eliminar a analgesia induzida pela morfina, injetada na pata ou no líquor. Não foi o que elas observaram.

Tabulae anatomicae (1741), de Pietro Berrettini da Cortona

Teleantagonismo
Quando os compostos de ação contrária foram aplicados em áreas do corpo distantes entre si alguns centímetros – simultaneamente na pata e na medula –, seus efeitos se anularam mutuamente, de modo semelhante ao que se observou nos testes em que eram ambos injetados na pata ou na medula. A essa interação entre compostos aplicados em pontos distantes, Ferreira deu o nome de teleantagonismo, um fenômeno que não se imaginava que ocorresse em neurônios. Até então só se conheciam algumas pequenas moléculas que eram transportadas muito lentamente no interior dessas células.

Era uma interação tão inesperada que custou aos pesquisadores reconhecer que se tratava de um novo fenômeno. “No início não acreditávamos nos resultados”, conta Mani, primeira autora do artigo que descreve o fenômeno na edição de 9 de dezembro dos Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). “Imaginávamos que ao administrar o analgésico na pata sua ação se restringisse ao local da injeção.”

Aparentemente essa interação não ocorre com todos os medicamentos que atuam sobre os neurônios. Mani e Djane observaram o teleantagonismo, consequência do transporte de substâncias no neurônio, em duas classes de fármacos: os analgésicos da família da morfina e os anti-inflamatórios do grupo da aspirina. Os primeiros bloqueiam as reações químicas associadas à transmissão da mensagem de dor no interior dos neurônios. O grupo da aspirina, o medicamento mais consumido no mundo, atua em diferentes células, inclusive neurônios, impedindo a produção de compostos que as deixam sensíveis aos estímulos dolorosos.

“Passamos dez anos fazendo experimentos, pensando e repensando os resultados. Chegamos até mesmo a imaginar que pudesse haver algum erro metodológico”, afirma Ferreira, que descreve a descoberta como um caso de serendipity – palavra inglesa de difícil tradução, que significa algo como um golpe de sorte de quem encontra por acaso algo valioso que não procurava. “Acreditamos que chegou o momento de abrir o jogo e ver o que outros pesquisadores dizem a respeito desse fenômeno”, diz o farmacologista, que coordenou os trabalhos que resultaram no artigo da revista PNAS.

A descrição do teleantagonismo, porém, resolve apenas parte das dúvidas. Ainda não se sabe, por exemplo, como esses compostos são transportados no interior dos neurônios – são carregados por proteínas, consumindo energia? Ou se espalham passivamente por difusão, como as moléculas do sal de cozinha em um copo com água? A injeção de um fármaco com ação contrária à da morfina marcado com material radiativo permitiu registrar seu tempo de viagem no interior do neurônio nociceptivo. Aplicado em uma das patas, percorreu em 90 minutos toda a extensão do neurônio até a medula espinhal. “O que se conhece da fisiologia dos neurônios e do transporte de moléculas não permite explicar a distribuição de compostos com tal rapidez”, conta Mani.

Outra via
Ferreira aposta em uma terceira explicação para o transporte dos fármacos. Eles poderiam ser conduzidos por uma intrincada rede de tubos de dimensão nanométrica – os microtúbulos – que compõe o esqueleto interno da célula. “Será que nessa escala a velocidade de transporte não fugiria aos parâmetros a que estamos acostumados?”, pergunta Ferreira. “Essa é uma hipótese que pode ser testada. Do ponto de vista mecânico, é possível construir microtúbulos e medir a velocidade de transporte no seu interior e na superfície externa.”

Com a gaveta das ideias reaberta, Ferreira começa a compor uma visão mais ampla e integrada de como atuam no organismo certos grupos de analgésicos e anti-inflamatórios – e a com­preen­der melhor a ação da morfina sobre os neurônios nociceptivos identificada por ele e Meire Nakamura em 1979. A chave para explicar por que esses fármacos aplicados no músculo conseguem inibir a dor em uma região mais ampla do corpo não estaria só no transporte desses fármacos no neurônio. Estaria relacionada também à região da célula em que agem.

Ferreira acredita que as reações químicas de bloqueio da dor ocorram numa área do neurônio conhecida como corpo celular – e não nos seus prolongamentos, os axônios –, que abriga o material genético e a maquinaria que mantém a célula viva. Uma característica anatômica permitiria ao corpo celular do neurônio funcionar como uma espécie de ponte farmacológica entre a periferia do corpo e o sistema nervoso central, afirmam os pesquisadores no artigo de dezembro. É que os corpos celulares dos neurônios que inervam braços, pernas e vísceras – enfim, o corpo todo – se agrupam nos gânglios, espessamentos dos nervos situados a poucos centímetros da medula espinhal. E os gânglios estão em contato com o fluido que banha o sistema nervoso central. “Essa característica permite integrar os efeitos farmacológicos observados no sistema nervoso periférico com os do sistema nervoso central”, diz Ferreira.

Ante essa nova compreensão de como os fármacos interagem com os neurônios, Mani ousa imaginar possíveis desdobramentos para o combate à dor. “Quem sabe um dia não se desenhem compostos que possam ser injetados no músculo para agir diretamente em pontos de interesse terapêutico do sistema nervoso central, sem causar os efeitos indesejados observados quando esses fármacos são administrados por via oral ou endovenosa?” Antes, porém, será preciso confirmar se o fenômeno descrito em roedores ocorre nos seres humanos. Como Ferreira diz a seus alunos, sem curiosidade – e certa dose de ousadia – não se faz ciência.

O Projeto
Reação inflamatória: mediadores envolvidos na gênese da dor, migração e ativação de leucócitos e septicemia (nº 01/07838-2); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Sérgio Henrique Ferreira – USP-RP; Investimento R$ 2.535.897,80 (FAPESP)

Artigos científicos
FUNEZ, M.I., et al. Teleantagonism: a pharmacodynamic property of the primary nociceptive neuron. PNAS. v. 105, n. 49, p. 190.38-19.043, 9 dez. 2008.

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