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Ecologia

Amazônia em 3 dimensões

Mapas tridimensionais detalham a estrutura da floresta e facilitam o monitoramento dos impactos da fragmentação na vegetação nativa

A floresta vista da Estação Espacial Internacional:   150 quilômetros do rio Amazonas, seus tributários,  os numerosos lagos e as terras alagáveis que o ladeiam

Astronaut photograph ISS017-E-13856 / nasaA floresta vista da Estação Espacial Internacional:
150 quilômetros do rio Amazonas, seus tributários, os numerosos lagos e as terras alagáveis que o ladeiamAstronaut photograph ISS017-E-13856 / nasa

De Manaus – As árvores aparecem em vermelho, amarelo e outras cores vibrantes, como se cada uma delas tivesse sido pintada à mão, nos mapas colados ao lado de artigos científicos e convites para seminários no corredor do prédio do Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (PDBFF) no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) em Manaus. A técnica que permitiu a construção dos mapas – a LiDAR (Light Detection and Ranging), que registra a variação de luz refletida pelas árvores – está facilitando bastante o trabalho dos pesquisadores do mais antigo programa de monitoramento de florestas tropicais do Brasil e um dos mais antigos do mundo. Iniciado em 1979 com o propósito de conhecer o impacto da construção de estradas e do avanço da agropecuária sobre a floresta amazônica, o programa acompanha a evolução de 11 áreas de florestas fragmentadas, além das áreas contínuas adjacentes que servem como controle para efeitos comparativos, somando mil quilômetros quadrados (km²) de floresta com árvores de até 55 metros de altura.

Até poucos anos atrás, a única forma de obter informações detalhadas sobre a composição e as mudanças da floresta era viajar muitas horas em estradas de terra e enfrentar chuva, calor, mosquitos e fungos até chegar às áreas de estudo, algumas a 80 quilômetros de Manaus. “Evidentemente essa nova técnica não resolverá todos os nossos problemas, nem dispensará as viagens de campo, mas está ajudando muito”, diz o ecólogo paulista José Luís Camargo, coordenador científico do PDBFF, um programa atualmente financiado pelo Instituto Smithsonian e pelo Inpa, em conjunto com agências e fundações de apoio à pesquisa no Brasil e nos Estados Unidos. Enquanto as imagens de satélite são bidimensionais, as do LiDAR são tridimensionais. Elas se formam a partir da luz refletida pela copa das árvores, que é captada por aviões que sobrevoam as áreas a serem estudadas. “Podemos mapear clareiras, que são importantes para o funcionamento da floresta, e ter uma boa noção do relevo que sustenta a vegetação”, diz Camargo.

A  LiDAR, sozinha ou combinada com outras técnicas de sensoriamento remoto, pode fornecer informações detalhadas sobre a altura, a concentração e a distribuição de árvores e indicar que grupos de animais devem viver por ali. Quanto mais emaranhada – ou de estrutura complexa, como diz Camargo – for uma floresta, menor a chance de abrigar grupos específicos de aves e morcegos, por exemplo. Em um estudo recém-concluído em uma das áreas do projeto, o biólogo brasileiro Karl Mokross, da Universidade Estadual da Louisiana, nos Estados Unidos, verificou que as aves que vivem no sub-bosque, região abaixo da copa das árvores, procuram insetos para se alimentar de preferência na floresta primária e raramente na floresta secundária, também chamada de capoeira.

Além das imagens tridimensionais, a equipe do Inpa tomou emprestada da química uma técnica de identificação de compostos químicos chamada espectrometria por infravermelho próximo para classificar plantas. Essa técnica se baseia no fato de que as ligações químicas de determinadas moléculas possuem frequências específicas de vibração, que são registradas por um aparelho e expressas na forma de um gráfico. Usando esse método, a engenheira florestal Flávia Machado Durgante e outros pesquisadores do Inpa examinaram 159 folhas de 10 espécies de árvores coletadas de uma área de floresta preservada próxima a Manaus e das áreas de estudo do PBDFF e mantidas na coleção do programa, atualmente com 54 mil amostras de folhas e estruturas reprodutivas (flores e frutos) das árvores monitoradas. Depois obtiveram a chamada assinatura espectral de cada espécie e concluíram que essa técnica representa um método simples e de baixo custo para identificar as espécies de plantas e diferenciar as espécies muito próximas, mesmo quando faltam estruturas reprodutivas como flores e frutos, que facilitam o reconhecimento por botânicos e ecólogos. Nesse trabalho, a ser publicado em março na revista Forest Ecology and Management, a margem de acerto médio foi de 96,6%. A bióloga Carla Lang começou a analisar as assinaturas espectrais de folhas de árvores e de plântulas da mesma espécie para ver se há uma coerência entre elas – se houver, facilitará o trabalho bastante difícil de identificar plântulas e prever a distribuição de espécies na floresta.

As primeiras alianças
As técnicas de trabalho agora à mão representam um pouco de conforto merecido para os pesquisadores do programa de estudos da Amazônia que começou a ser desenhado em meados da década de 1970 por dois biólogos norte-americanos, Thomas Lovejoy e David Conway Oren, ambos já com vários anos de experiência em pesquisa de campo na região. Naquela época o governo promovia a ocupação das florestas do norte de Manaus com pecuária. “Eu que alertei Lovejoy para a oportunidade ímpar de conversar com os proprietários, entrar na floresta antes do desmatamento e fazer inventários biológicos, algo que não havia sido feito no Panamá”, lembra-se Oren, ornitólogo que trabalhou no Inpa, no Museu Goeldi e na Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém, e atualmente é coordenador de biodiversidade do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Os biólogos não esqueciam que a construção do canal do Panamá, concluída em 1914, havia isolado áreas de uma floresta tropical sobre a qual sabiam muito pouco. Lovejoy gostou da ideia e disse que iria buscar financiamento.

Os bandos de aves  (em vermelho) preferem a floresta primária   de um fragmento de  10 hectares...

Scott Saleska / Universidade do Arizona e Michael Lefsky / UNIVERSIDADE DO ESTADO DO Colorado Os bandos de aves (em vermelho) preferem a floresta primária de um fragmento de 10 hectares…Scott Saleska / Universidade do Arizona e Michael Lefsky / UNIVERSIDADE DO ESTADO DO Colorado

Lovejoy se tornou o porta-voz do programa e uma das maiores autoridades mundiais em biodiversidade – atualmente ele é professor de ciência e política ambiental da Universidade George Mason, nos Estados Unidos (ver Pesquisa Fapesp 171). Um recorte de uma página do jornal A Província do Pará de 7 de janeiro de 1979 colado no corredor do prédio do PBDFF apresenta o então chamado Programa de Tamanho Mínimo Crítico da Amazônia, com custos anuais previstos em US$ 500 mil e apoio do Inpa, do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), que originou o Ibama, e da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa). Definir a área mínima capaz de efetivamente preservar uma floresta era uma preocupação do governo brasileiro e, além disso, “um problema mundial”, argumentava Lovejoy, então ligado ao Fundo Mundial da Vida Selvagem (WWF), a primeira instituição internacional a financiar esse trabalho.

“Foi a época dourada do Inpa, sob a direção de Warwick Kerr. Em apenas um dia ou dois eu consegui a aprovação do diretor e do chefe do Departamento de Ecologia do Inpa, Herbert Schubart, e da Suframa, que também foi muito aberta. Os fazendeiros também colaboraram”, contou Lovejoy, lembrando a criação desse programa de pesquisas na Amazônia. “Eu basicamente acompanhei Rob [Richard Bierregaard, biólogo e primeiro coordenador científico do PDBFF, atualmente na Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos], apresentei-o às pessoas de Manaus e deixei-o trabalhar. Rob fez amizade com os fazendeiros, que estavam satisfeitos por participar de um trabalho que estava tendo atenção da mídia.”

O programa previa o isolamento de áreas de floresta com tamanhos variáveis e o levantamento e monitoramento de árvores, insetos, anfíbios, répteis, aves e mamíferos. O objetivo era ver quais espécies perecem e quais sobrevivem à medida que a floresta diminui. Era uma forma de examinar o impacto da fragmentação sobre a floresta e os organismos que a constituem. Ainda hoje a redução da área de vegetação nativa, como resultado da expansão das estradas, da agricultura ou da pecuária, é uma das principais causas de perda da biodiversidade na Amazônia, a maior floresta tropical do mundo.

Base de dados amazônica
O trabalho de campo realizado ao longo de 33 anos, completados em 2012, resultou em uma monumental base de dados sobre árvores e aves. Atualmente os pesquisadores acompanham o crescimento de 45.376 árvores e 178.295 arvoretas (menos de 10 centímetros de diâmetro à altura do peito) em 55 hectares de floresta contínua e 39 hectares de floresta fragmentada. “Estamos monitorando uma floresta com uma das mais diversas comunidades arbóreas do mundo”, diz Camargo. Além das árvores, recentemente eles começaram a contabilizar os cipós. Em um levantamento recém-concluído em 69 hectares, eles marcaram 33.154 cipós. “Em geral cipós não são alvos de levantamentos florestais, mas representam uma parcela importante da biomassa e da diversidade de uma floresta.”

Scott Saleska / Universidade do Arizona e Michael Lefsky / UNIVERSIDADE DO ESTADO DO Colorado … e raramente percorrem a capoeira (em verde-claro, ampliada à direita). Verdes mais escuros representam a vegetação mais altaScott Saleska / Universidade do Arizona e Michael Lefsky / UNIVERSIDADE DO ESTADO DO Colorado

A base de dados contém informações sobre 60 mil aves de 400 espécies que vivem no sub-bosque, a região intermediária entre a copa das árvores e o solo. Cada ave recebeu um anel (anilha) com um número que permite aos biólogos, quando as capturam nas chamadas redes de neblina, saber por onde andaram. “Esse banco de dados permite fazer perguntas mais complexas, que só aparecem após décadas de acompanhamento, servem para embasar políticas públicas e ajudar a resolver problemas novos, como o impacto das mudanças do clima sobre a Amazônia”, diz Camargo. “Muitos pesquisadores vêm trabalhar aqui porque já temos um longo caminho percorrido, não precisam começar do zero. Esse conhecimento é um patrimônio nacional.”

Muitas conclusões do PDBFF teriam sido inviáveis em um estudo de duração menor, de acordo com uma das conclusões de um artigo publicado em janeiro de 2011 na Biological Conservation com uma síntese de 32 anos de trabalho de campo. O artigo é assinado por 16 biólogos de instituições do Brasil, dos Estados Unidos, da Austrália e do México ligadas ao PDBFF – o primeiro autor é o biólogo norte-americano William Laurance, que viveu cinco anos em Manaus e atualmente trabalha na Austrália. A vulnerabilidade de árvores de maior porte à fragmentação e os efeitos de eventos efêmeros como o El Niño e as tempestades, eles argumentam, só se tornaram evidentes após décadas de acompanhamento. Quando caem, eles concluíram, as árvores podem formar clareiras, que desviam a umidade das árvores próximas e alteram a luminosidade e a temperatura (ver ilustração). A fragmentação pode reduzir a circulação de água, limitar o território de muitas espécies de aves, que não conseguem atravessar grandes áreas desmatadas, reduzir a população de abelhas, vespas, besouros e formigas, aumentar as de sapos e aranhas, causando uma perda cumulativa de biodiversidade e uma redução das reservas de água.

Floresta frágil
As simulações do comportamento da floresta, alimentadas com os dados do PDBFF, sugeriram que mesmo fragmentos de 10 hectares requerem pelo menos um século para recuperarem a diversidade biológica e a biomassa de antes de terem sido formados. Uma vez constituídos, esses fragmentos sofrem uma reorganização profunda de suas comunidades de árvores, palmeiras, trepadeiras e animais. “Como regra geral, quanto menor a área, mais profundos serão os efeitos da fragmentação”, diz Camargo. Quem percorre as áreas de estudo nota a diferença: os fragmentos menores, de um hectare, já perderam parte de sua estrutura florestal original e parecem uma capoeira que resiste com dificuldade, enquanto os maiores, principalmente os de 100 hectares, ainda abrigam espécies de árvores que crescem com pouca luz e umidade elevada, como em uma típica floresta amazônica. As áreas menores são mais frágeis “e sofrem mais com as secas mais intensas, como a de 2005 e a de 2010”, observa Camargo.

044-049_Amazonia_205-2Sandro castelliUma das consequências da fragmentação é o chamado efeito de borda: transformações causadas pela radiação solar, luz e vento das áreas externas sobre a periferia de uma floresta. Por estarem mais sujeitas às mudanças no microclima, as árvores mais próximas à borda podem cair mais facilmente ou secar e morrer em pé. Em consequência do efeito de borda e da fragmentação da floresta, “metade da fauna de aves e mamíferos do sub-bosque pode entrar em extinção local, às vezes de modo irreversível”, alerta Camargo. De acordo com o artigo de 2011, a cada ano o desmatamento para a abertura de pastagens acrescenta 32 mil quilômetros de novas bordas de florestas e produz paisagens dominadas por fragmentos pequenos, menores de 400 hectares, e de formato irregular, aumentando o efeito da radiação solar e dos ventos sobre a vegetação nativa. “Se é assim aqui, pode ser ainda pior em outras áreas, como no arco do fogo, a região do Pará, Mato Grosso e Rondônia mais sujeita ao desmatamento.”

“Dois dias atrás, o corredor estava fechado de tanta mala”, disse Camargo na manhã de 9 de novembro de 2012. “Nosso 21º curso de treinamento terminou ontem. Já formamos 420 ecólogos.” Todo ano o curso de Ecologia da Floresta Amazônica – realizado normalmente em julho ou agosto e excepcionalmente em outubro, como no ano passado – reúne 20 estudantes de pós-graduação e 15 professores de universidades de todo o país. “A maioria dos participantes nunca tinha pisado antes na Amazônia”, conta Camargo. Os professores do curso apresentam os distintos ambientes da região, da várzea aos arquipélagos como Anavilhanas, com o propósito de formar profissionais qualificados para entender e ajudar a resolver os problemas da região.

Outra forma de compartilhar os resultados das pesquisas e ampliar o conhecimento sobre a região são cursos de três semanas para estudantes de graduação. “Fui um dos responsáveis por esse curso, recentemente, na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, na Universidade Estadual de Minas Gerais e na Universidade Federal do Amazonas”, conta Camargo. “Hoje o PDBFF forma mais pesquisadores do Brasil do que dos Estados Unidos.”

Estradas como esta quebram a unidade da floresta e criam fragmentos que limitam os movimentos de animais, reduzem a biodiversidade e influenciam o clima

SERGIO JORGE BRAZIL / PHOTONONSTOPEstradas como esta quebram a unidade da floresta e criam fragmentos que limitam os movimentos de animais, reduzem a biodiversidade e influenciam o climaSERGIO JORGE BRAZIL / PHOTONONSTOP

Atualmente, segundo ele, o Smithsonian e o Inpa cobrem apenas 20% dos gastos anuais e a maior parte do orçamento anual de R$ 1,2 milhão provém de doações ou de agências de financiamento ou fundações dos Estados Unidos e do Brasil. “Na última década foi difícil conseguir financiamento, porque as doações mudaram de foco e o dinheiro migrou dos estudos sobre fragmentação florestal para estudos sobre mudanças climáticas”, diz Camargo. “Outro problema grande que enfrentamos é a desvalorização do dólar. Em alguns anos, por causa do câmbio, perdemos um terço do orçamento previsto.” Há outras preocupações, como uma possível redistribuição de terras próximas às áreas de estudo, que poderia mudar o uso da terra e ampliar os impactos negativos sobre os fragmentos.

Artigos científicos
DURGANTE, F.M. et al. Species spectral signature: Discriminating closely related plant species in the Amazon with near-infrared leaf-spectroscopy. Forest Ecology and Management. v. 291, 213. No prelo.
LAURANCE, W. et al. The fate of Amazonian forest fragments: a 32-year investigation. Biological Conservation. v. 144, n. 1, p. 56-67. 2011.
STARK, S.C. et al. Amazon forest carbon dynamics predicted by profiles of canopy leaf area and light environment. Ecology Letters. v. 15, n. 12, p. 1.406-14. 2012.

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